Relógio de Noite

Relógio de Noite

A extraordinária coleção de relógios do Museu possui no seu núcleo de relógios de mesa um exemplar inglês, de mesa, do terceiro quartel século XVII, de grande raridade.

O relógio, assinado pelo relojoeiro da corte de Carlos II de Inglaterra,  encontra-se exposto junto a um núcleo de peças coevas, relacionadas com o casal real, CarlosII e Catarina de Bargança.

 

Relógio de Noite

Relógio de noite, de mecanismo inglês, de mesa, inserido em caixa rectangular, de ébano decorada com frisos de tremidos, encimada por frontão de lanços interrompidos por pedestal ao centro, por sua vez encimado por animal imaginário  (espécie de leão, sentado, com grande juba, peito, braços e pequenas asas), em bronze dourado, provavelmente relacionado com a família encomendante do relógio original (Itália).

O mostrador é rectangular em latão pintado, sendo protegido por porta envidraçada, a nível decorativo, apresenta representação classicizante de uma mansão com jardim, onde figuras se passeiam por entre ciprestes e estátuas. A parte inferior da caixa tem a frente em vidro, revelando um espaço que poderia ser originalmente destinado ao movimento do pêndulo ou a um carrilhão de música colocado através de uma pequena porta lateral, inserida no lado direito. Neste espaço situa-se uma lamparina de azeite que servia para, à noite, iluminar por trás os números do mostrador, permitindo a leitura das horas.

 

 

O mostrador apresenta uma abertura vazada em meio arco onde se indicam as horas; os 60 minutos são assinalados por pequenos recortes no rebordo superior do arco, enquanto os números romanos I, II e III, também vazados no metal por cima do arco, marcam o quarto, a meia e os três quartos de hora. Existe ainda, a indicação de meios quartos de hora assinalados por uma pequena abertura em forma de gota entre os números romanos. A indicação das horas é fornecida por pequenos discos circulares com numeração árabe (1 a 12), colocados numa corrente por trás do mostrador, que vão percorrendo o meio arco, iniciando o seu percurso no lado esquerdo. A indicação da hora surge no lado esquerdo do arco rodando para a direita (no sentido dos ponteiros de um relógio) até completar os sessenta minutos. As horas, os quartos e os orifícios que indicam os meios quartos deveriam ser visíveis de noite quando iluminados pela luz da candeia de azeite alojada no interior da caixa. Atualmente esta função é conseguida através de uma lâmpada elétrica colocada atrás do mecanismo.

 

O mecanismo, em latão e aço é assinado na platina traseira: Eduardus East Londini (forma latinizada para Edward East de Londres), tem duas rodagens accionadas por mola real com sistema de fuso, escape de tic-tac e pêndulo de pré-suspensão. O controlo das badaladas é feito por roda contadora de horas. Toque de horas em campainha de campanil. Tem autonomia de uma semana.

 

Irmãos Campani e a invenção do relógio de noite

A invenção do relógio de noite remonta a meados do século XVII em Itália, pelos irmãos Campani. Nascidos em Castel San Felice na Umbria, os três irmãos Matteo, sacerdote, Giuseppe e Pier Tommaso mestres relojoeiros, transferem-se para Roma quando Matteo pároco na igreja de San Tommaso em Roma começa a circular no meio eclesiástico romano, o que lhe permitiu o acesso ao Vaticano e à corte papal.

Pier Tommaso destacou-se ao inventar mecanismos complexos de automatização dos relógios, recebendo do Papa Alexandre VII (1655-1667), o convite para fazer um relógio para Cristina da Suécia, que então visitava Roma para se converter ao catolicismo. Foi esta encomenda que o tornou famoso na corte papal, onde veio a assumir o cargo de relojoeiro oficial.

O referido Papa manifestou ainda interesse em ter um relógio no qual pudesse ver as horas durante a noite:

Como gostaria que alguém pudesse inventar um relógio que me permitisse ver as horas também de noite! Um que não precise acender um lume para ver o mostrador; e um que não produza um barulho sem fim, aquele agitar de discos que me mantém acordado o resto da noite.

 

Face ao pedido do papal, Pier Tommaso criou um sistema no qual, substituiu a roda de escape por um pequeno tambor moderador, que mais não era do que, uma pequena caixa cilíndrica de marfim, com várias divisões internas, por onde passava uma determinada quantidade de mercúrio, que assim regulava o mecanismo de uma forma silenciosa.

No entanto, esta solução revelou-se pouco precisa, tendo sido substituída por uma outra, desta vez mecânica: o sistema de escape era uma manivela (escape de manivela) que utilizava o pêndulo como elemento oscilante, dando ao relógio uma maior precisão.

O problema da leitura nocturna foi ultrapassado através de um sistema em que o mostrador passa a ser constituído por aberturas perfuradas onde estão recortadas as indicações dos minutos e dos quartos de hora e por três discos móveis (mais comum em relógios nocturnos italianos) ou uma corrente móvel (diferentes sistemas chamados “wandering hours”), colocados por detrás do mostrador, no qual figuram os números correspondentes às horas (1-12), também perfurados, sendo que a interação entre os dois dispositivos, correspondia ao indicar da hora. De forma a ser visível, o dispositivo era iluminado por uma (duas ou três) candeia de azeite cuja luz atravessava os algarismos perfurados. Habitualmente as candeias de azeite, com depósito para que houvesse combustível toda a noite, eram colocadas numa prateleira na parte superior do interior da caixa, junto a uma chaminé (que na maior parte das vezes se perdeu), forrada a latão, para a saída de fumos e calor.

Após a resolução das questões técnicas, os irmãos Campani procuraram uma solução estética para integrar o mecanismo, tendo escolhido um modelo em voga na época, que seguia as linhas de um altar em forma de tabernáculo. A caixa construída em ébano ou na sua imitação apresentava um tímpano quebrado e colunas laterais, tal como nos altares e um painel de cobre pintado como mostrador, sendo encomendadas a ebanistas e pintores de renome como Carlo Maratta e Filippo Lauri. Em geral, os temas decorativos eram de cariz religioso e mais excepcionalmente, mitológico. O primeiro exemplar foi apresentado ao Papa em 1656, tendo tido grande sucesso, atraindo novos clientes, popularizando-se entre as elites romanas e estrangeiras tendo-se tornado inclusive, presente de Estado (oferta do cardeal António Barberini a Luís XIV).

O seu êxito levou a que a técnica se tivesse desenvolvido através de outros relojoeiros noutras cidades italianas assim como, em Inglaterra onde chegaram por volta de 1662-1663.

Exemplos de relógios dos italianos Campani:

http://www.pendulantic.com/exempl_rest/9999_eng.htm

https://www.britishmuseum.org/research/collection_online/collection_object_details.aspx?objectId=55460&partId=1&searchText=campani+clock&page=1

https://www.gettyimages.ca/detail/photo/night-clock-signed-by-filippo-treffler-high-res-stock-photography/159618785

 

Edward East, relojoeiro da corte de Carlos II

Em Inglaterra temos notícia do fabrico de relógios de noite também no século XVII, através do trabalho de Edward East que assinou o relógio de noite em estudo.

Nascido em Londres cerca de 1602, foi um dos principais relojoeiros ingleses do século XVII, começando a aprender o ofício de ourives em 1618, tendo terminando a sua formação em 1627. Nessa época ainda não existia a corporação dos relojoeiros, que só vem a ser fundada em 1631 e para a qual East foi eleito como membro em 1632, onde veio a tornar-se mestre em 1645 e 1653.

A qualidade do seu trabalho levou a que Carlos II o tenha indigitado para o cargo de relojoeiro-chefe da corte, em 1660, lugar que ocupou até à morte ocorrida em 1697.

Sabemos ainda que em 1684, East aparece referido como sendo um dos relojoeiros tanto do rei como da rainha. Foi ainda um dos primeiros relojoeiros a aperfeiçoar o uso do pêndulo em Londres.

 

Samuel Pepys

Cronista de costumes, Samuel Pepys (1633-1703) manteve durante cerca de 10 anos, entre 1660 e 1669 o seu Diary ou Journal onde relatou usos, eventos e factos sobre personalidades, que hoje são uma importante fonte para o conhecimento do quotidiano da Londres pós Restauração, como a descrição do grande fogo de Londres (1666).

Apesar de ter nascido num meio modesto, frequentou o liceu e mais tarde o Magdalene College Cambridge (onde se conservam os seus diários) acedendo assim, a cargos públicos e passando a relacionar-se com as elites, tendo-se tornado secretário de Edward Montagu em 1665, o que lhe permitiu movimentar-se em lugares de destaque da sociedade inglesa.

Nota: Edward Montagu comandante da marinha, futuro conde de Sandwich, deslocou-se a Lisboa como embaixador extraordinário por ocasião da ratificação do tratado de Whitehall, das festas de casamento de D. Catarina de Bragança e da tomada de posse de Tânger. (FLOR, 2012)

 

É a partir de uma descrição publicada no seu Diary, na entrada relativa ao dia 24 de Junho de 1664, altura em que Pepys foi convidado a visitar os apartamentos privados da Rainha (Palácio de Whitehall), que ficamos a saber que a princesa portuguesa, rainha de Inglaterra D. Catarina de Bragança (1638-1705) possuía um relógio de noite no seu quarto:

After dinner to White Hall, and there met Mr. Pierce, and he showed me the Queene’s bed-chamber, and her closet, where she had nothing but some pretty pious pictures, and books of devotion, and her holy water at her head as she sleeps, with her clock by her bed-side, wherein a lamp burns that tells her the time of the night at any time. Diary, 24 junho 1664

 

(Depois do jantar [fui] para White Hall e aí encontrei-me com Mr. Pierce, que me mostrou o quarto da Rainha [D. Catarina de Bragança] e o seu armário onde ela onde ela nada mais tinha que umas bonitas imagens religiosas, livros de devoção e a sua água benta junto à cabeceira enquanto dorme e o seu relógio ao lado da cama, onde uma chama arde e que lhe diz as horas de noite, a qualquer hora. Tradução livre da autora)

 

Questões de proveniência

Quando Medeiros e Almeida adquire o relógio de noite na leiloeira Christie’s, em Londres, em 8 de Novembro de 1972, a peça aparece anunciada e descrita como tendo sido pertença da Rainha Catarina de Bragança, sendo o tal, referido por Samuel Pepys na sua crónica.

 

 

Já em 1951 o relógio tinha sido publicado por Geoffrey Rhodes e em Outubro de 1958, um seu antigo proprietário, o relojoeiro e antiquário James Oakes expôs o relógio em Londres, com essa proveniência, na exposição: “Pendulum to Atom – A Centenary Exhibition”, dizendo o seguinte: “An extremely rare and interesting Night Clock by Edward East, c.1664. Believed to be the clock East made for Catherine of Braganza, wife of Charles II”.

A imprensa da época do leilão repetiu a ilustre proveniência em diferentes artigos (Antiques Trade Gazette, 4 de Novembro de 1972, The Daily Telegraph, Novembro de 1972: Royal Clock that Pepys described is for sale, e Fanfare for Europe – The British Art Market, Londres, 1973), bem como alguns autores que, ao longo do tempo, têm vindo a abordar o tema seja de relógios reais, seja de relógios de noite (Jagger, 1983).

O texto do lote referia ainda a pré-existência de um carrilhão (cilindro musical) que posteriormente foi retirado provavelmente por se pensar que não seria de origem. Fica por apurar se a caixa continha originalmente um relógio nocturno italiano, se esta foi levada vazia para Inglaterra onde lhe foi posto o relógio nocturno inglês e em que altura lhe foi acrescentado o carrilhão (próprio de um relógio musical) com o qual o mecanismo existente, não teria qualquer funcionalidade.

 

Sendo Edward East relojoeiro real, sendo o relógio um belo e raro exemplar coevo, em boas condições de conservação e em funcionamento, tal afirmação não suscitou dúvidas embora, sabemos agora, existam em Inglaterra, outros colecionadores privados com relógios de noite, do mesmo relojoeiro, e com a mesma pretensão, um deles inclusivamente descrito como tal nas 3ª e 5ª edições do importante dicionário de J.F. Britten (1911, 1922)…

 

Recentemente, por ocasião de uma exposição de relógios dos séculos XVII e XVIII em Londres, um colaborador da Casa-Museu, o Comandante Luís Couto Soares estabeleceu contacto com um investigador de relojoaria antiga, o inglês Keith Piggott, membro da Antiquarian Horological Society, que se mostrou interessado em desenvolver um estudo aprofundado sobre o exemplar da Casa-Museu. Este estudo, agora finalizado (Junho de 2019) vem esclarecer as dúvidas que se levantavam quanto à datação e proveniência do relógio de noite da coleção Medeiros e Almeida.

 

À luz dos recentíssimos estudos (Junho de 2019, disponíveis em: http://www.antique-horology.org/piggott/ – Open archive), em relação à caixa, Piggott apurou que se tratará de construção italiana, mais concretamente milanesa, sendo muito semelhante a outras (publicadas por Brusa, 1993, 2005), cujos mecanismos estão atribuídos ao relojoeiro de origem flamenga, Stefano Santuel importante fabricante de relógios nocturnos em Milão, na segunda metade do século XVII. Conforme já referido, desconhece-se em que circunstâncias terá chegado a Inglaterra.

 

No que respeita ao mecanismo, Piggott demonstra que o relógio tem um escape de “tic-tac” (utilizado com pêndulos curtos que, por sua vez produzem menos ruído no seu movimento, portanto indicados para o período nocturno), pormenor técnico que remete definitivamente a sua execução para meados da década de 70 do século XVII, altura em que terá sido inventado e começou a ser utilizado, impossibilitando desta forma que, este possa ser o relógio que Pepys viu no quarto de D. Catarina em meados da década de 60 do mesmo século.

 

Apesar de tal conclusão deitar por terra a hipótese da proveniência real, este não deixa de ser um belíssimo exemplar da relojoaria inglesa do século XVII e em particular, deste tipo de relógio de que existem tão poucos na actualidade. O seu escasso número deve-se ao facto de que facilmente se podiam deteriorar ou mesmo incendiar devido à chama ardente e ao calor acumulado no seu interior. Por outro lado, a invenção do relógio com pêndulo sonoro emitindo as horas de noite, levou à sua rápida substituição e extinção tendo sido produzidos  ao longo de apenas cerca de dezasseis anos.

 

 

Proveniência

Após existência desconhecida durante os séculos XVII a XIX, o relógio pertenceu à colecção do antiquário e relojoeiro James Oakes Esq. (à época com loja em Duke Street, 6, St. James’s), Londres, tendo sido anunciada a sua venda na revista “The Connoisseur” de Março de 1949;

O paradeiro do relógio é desconhecido até ter sido adquirido na leiloeira Christie’s, Londres, de 8 de Novembro de 1972 (lote 75), pelo antiquário Wolf (Lopo) Steinhardt (Beco da Bicha, 3) de Lisboa, agindo enquanto intermediário de Medeiros e Almeida, pela considerável quantia de 9.500 guinéus (1 Guinéu = c. 1£ 5 pence / 21 Xelins).

 

 

NOTA: A Casa-Museu agradece a colaboração do antiquário e investigador de relojoaria inglês Keith Piggott (Barnard Castle, 1942-) que graciosamente dispôs dos seus conhecimentos para elaborar um profundo estudo sobre o relógio de noite (autoria, tipologia, mecanismo, etc.) da coleção.

 

 

Cristina Carvalho

Casa-Museu Medeiros e Almeida

 

 

NOTA: A investigação é um trabalho permanentemente em curso. Caso tenha alguma informação ou queira colocar alguma questão a propósito deste texto, por favor contacte-nos através do correio eletrónico: info@casa-museumedeirosealmeida.pt

 

 

Bibliografia

AA.VV. – Fanfare for Europe The British Art Market, London: Sotheby Publications Ltd, 1973.

PEPYS, Samuel – ‘The Diary of Samuel Pepys’, 24th June, 1664, (Volume 5, 1664, Publisher, Bell, 1971).

Catálogo Christie’s, ‘Fine Clocks’, 8 de Novembro 1972.

Antiques Trade Gazette, 4 de Novembro de 1972.

NURSE, Keith – The Daily Telegraph, Novembro de 1972: “Royal Clock that Pepys described is for sale”.

BRITTEN, Frederick James – Old Clocks & Watches and their Makers, 5ª Edição, 1922.

RHODES, Geoffrey; Primitive Clockmakers – Edward East and His Times, in: The Antique Dealer & Collector’s Guide, Fevereiro 1951.

Pendulum to Atom – A Centenary Exhibition, The Worshipful Company of Clockmakers (…), Outubro 1958.

BRUSA,Giuseppe – L’arte dell’orologeria in Europa. Sette secoli di orologi meccanici, Bramante, 1993

BRUSA,Giuseppe – La misura del tempo : l’antico splendore dell’orologeria italiana dal XV al XVIII secolo, Trento : Castello del Buonconsiglio, monumenti e collezione provinciali, 2005

BRITTEN, F.J., CLUTTON, Cecil, ILBERT, C.A. – Old Clocks & Watches and their Makers, 9ª Edição, Londres. Methuen Spon, 1982.

FLOR, Susana Varela – Aurum Regina or Queen Gold. Fundação Casa de Bragança, [S/l], 2012.

JAGGER, Cedric – Royal Clocks the British Monarchy and its Time keepers 1300-1900. Robert Hale, London, 1983.

 

Webgrafia

 Lisbon’s Extraordinary Night Clock / APPENDIX 1: The ‘Milanese’ Night-Clock Case, 3rd Quarter of the 17th Century. / APPENDIX 2: The English Night Movement by Edward East of London, circa 1670-80. / APPENDIX 3: Portfolio of Italian Night-Clocks. / APPENDIX 4: Edward East’s Night-Clocks and His Contemporaries’ Works. In:  http://www.antique-horology.org/piggott/ (Open archive)

MARTE, Cherubina e SOPRANA, Stefano – Gli orologi notturni dei Papi: Le diverse letture del tempo nella Bibbia e loro applicazione nell’orologeria, Vicenza, 2007.

http://www.soprana.com/wp-content/uploads/Gli-orologi-notturni-dei-Papi.pdf

http://www.arqnet.pt/dicionario/catarinaing.html

http://www.pepys.info/1664/1664jun.html

https://hora.it/hora_vecchio_sito/La%20voce%20di%20HORA/rivista13/articolo02r13.pdf

Autor

Edward East (1602-1697)

Data

c.1670-1685

Local

Inglaterra, Londres

Materiais

Ébano, bronze dourado, latão, metal e vidro.

Dimensões

Alt. 84 cm. x Comp. 39,5 cm. x Larg. 23,5 cm.

Category
Relógios Ingleses