“Auf Stund und Zeit, bin ich bereit”
(Na hora e no tempo, estou pronto)
Relógio despertador de mesa inserido em estrutura retangular em bronze dourado e assente em quatro pés em prata em forma de sereia. Decorando toda a peça, mascarões e cartelas, também em prata, com inscrições em alemão referentes ao tempo e ao sonho. Para além do relógio existe uma fecharia de pederneira e uma caixa com tampa que abre por meio de uma mola, contendo no interior suporte para vela e uma caixinha para pólvora.
História do despertador:
Desde sempre que o homem procurou métodos para acordar no momento pretendido, desde a luz solar à ingestão de grandes quantidades de líquidos antes de se deitar, de modo a despertar cedo e poder aproveitar as horas de luz. Na antiga Grécia usaram-se dispositivos mais sofisticados, como a adaptação de clepsidras com sistemas que produziam um som a determinado momento. Curiosamente, em 1555, Tagi ad-Din Muhammad ibn Máruf, cientista nascido na Síria, menciona, num dos seus livros, um mecanismo despertador de uso doméstico baseado na colocação de um pino no mostrador do relógio, não se sabendo porém, se o mesmo foi alguma vez construído. Na Europa, a partir da Idade Média e durante muitos séculos, eram os relógios públicos que regiam a vida do povo, sendo os sinos das igrejas, em ocasiões associados a relógios mecânicos, que marcavam os diferentes momentos do dia.
De forma geral e errada, a invenção do relógio-despertador tal como o entendemos hoje em dia – um relógio com algum tipo de engenho associado que produz um sinal sonoro à hora pretendida – é atribuída a Levi Hutchins, que em 1787 fabricou na sua casa em New Hampshire, EUA, um dispositivo baseado num mecanismo associado a uma caixa de madeira que fazia soar um sino às 4 da madrugada todos os dias; porém este dispositivo não era regulável e estava exclusivamente preparado para acordar o seu inventor a horas de ir para o trabalho.
Na verdade, a ideia do relógio-despertador teria sido levada para os Estados Unidos no início do século XVIII por emigrantes ingleses, sendo que este tipo de dispositivos de uso mais ou menos caseiro, já existia na Europa, nomeadamente em Inglaterra e na Alemanha.
Durante a Revolução Industrial, com a necessidade crescente de que os trabalhadores coordenassem a sua chegada às fábricas, surge uma nova profissão na Inglaterra e na Irlanda, um homem – o knocker-up -, que cada manhã batia à porta dos trabalhadores para os despertar a horas de começarem a jornada laboral. Esta pessoa era muitas vezes paga pela própria fábrica e continuou a existir, em maior ou menor medida, até bem entrado o século XX, quando os relógios-despertador começam a ser acessíveis a um setor mais amplo da população.
A primeira patente de um relógio-despertador regulável foi registada pelo francês Antoine Redier em 1847, sendo que uns anos mais tarde, em 1876, uma segunda patente foi escriturada para pequenos despertadores de cabeceira, desta vez pela Seth Thomas Clock Company. A partir desse momento serão fabricados e comercializados relógios despertadores por diversas companhias, na Europa e nos Estados Unidos, passando num período de tempo relativamente curto, de estranhos mecanismos a objetos presentes na vida quotidiana.
A Inglaterra como referente relojoeiro da época:
Na segunda metade do século XVII, dois acontecimentos marcarão um ponto de inflexão no mundo da relojoaria; a aplicação de pêndulos nos relógios por parte dos holandeses Christiaan Huygens (1629-1695) e Salomon Coster (c.1620-1659) e a adição da espiral de aço – ‘cabelo’ – ao balanço, em relógios de bolso, em substituição da cerda (pelo) de porco, também por Huygens. Embora estes avanços tenham sido realizados por holandeses, a verdade é que será em Inglaterra que a sua aplicação e exploração será mais notável e isto, junto com uma série de bons relojoeiros a trabalhar na altura na Inglaterra – à cabeça dos quais o grande mestre Thomas Tompion (1639-1713) -, levará a que o país se converta num referente nesta área durante quase cem anos.
Graças às melhoras introduzidas no fabrico dos relógios, chega-se a um momento no qual a perícia técnica e o refinamento estético caminham de mãos dadas, embora a certa altura a estética começou a estandardizar-se dando lugar no início do século XVIII a peças menos apelativas do ponto de vista formal.
Considerados os melhores da época, os relógios ingleses eram muito procurados dentro e fora das fronteiras do país – como seria o caso deste relógio-despertador de fabrico inglês, mas destinado, muito provavelmente, ao mercado alemão ou austríaco – e, em consequência, foram também muito imitados e copiados, encontrando-se a partir de meados do século XVIII relógios realizados em outros países – nomeadamente na Suíça – vendidos como sendo de manufatura inglesa.
O relógio despertador da Casa-Museu:
Relógio despertador esconde o mecanismo numa caixa de bronze dourado apoiada sobre quatro pés em prata em forma de sereia e decorada com mascarões e cartelas, também em prata, com inscrições em alemão. Existem onze cartelas – cada uma com uma inscrição – sendo que uma delas tem cinco inscrições, existem ainda outras duas inscrições no interior da caixa, gravadas diretamente no bronze, o que perfaz um total de 17 epígrafes.
No lado esquerdo situa-se o relógio propriamente dito, coberto por uma semiesfera de vidro. O mostrador, colocado na horizontal, possui um ponteiro das horas estilo “beetle”, sendo que também existiria originalmente um ponteiro para os minutos, provavelmente com o formato “poker”. Como era costume na época com a introdução do segundo ponteiro, circundando o anel das horas (em números romanos separados por losangos) existe um anel com as divisões para os minutos e ainda, no exterior deste, doze reservas que marcam intervalos de cinco minutos em numeração árabe. No centro, um segundo mostrador para o alarme com numeração das horas em números árabes e com um anel interno que marca os quartos. Como era habitual nos mostradores ingleses da época, o fundo escavado é opaco destacando sobre ele os campos em metal polido onde estão os números gravados e preenchidos com lacre preto.
No lado direito situa-se uma caixa com tampa que esconde um suporte de vela e uma caixinha para guardar pólvora. Na face dianteira destaca-se uma fecharia de pederneira com a sua respetiva caçoleta (sistema de disparo de uma pistola de percussão). O funcionamento deste relógio despertador é muito curioso; quando o alarme é ativado, o cão da pederneira que se arma (ficando em tensão) é libertado sendo que o pedaço de sílex fixo no cão percute o fuzil (‘tampa’ de metal da caçoleta), produzindo faíscas que, por sua vez, detonam a pólvora seca contida na caçoleta. Simultaneamente, esta reação aciona uma mola que provoca a abertura da tampa da caixa onde se oculta a vela deitada, que, por sua vez, começa a subir lentamente para a posição vertical ao mesmo tempo que as faíscas produzidas pela frição ateiam o pavio da vela.
A detonação da pólvora seca produz um som semelhante ao do tiro de uma arma de fogo, o que constituía uma forma bastante peculiar – e agressiva! –, de acordar. , mas já com a luz proveniente da vela acesa. De entre os cerca de setecentos relógios que formam parte da coleção da Fundação Medeiros e Almeida, este relógio-despertador constitui um exemplo raro da autoria de Godfrie Poy (embora na máquina a assinatura seja “Gottfrie Poy” numa versão ‘germanizada’), relojoeiro a trabalhar em Londres entre 1718 e 1750. O facto de as inscrições que o decoram estarem em alemão indica o seu destino para o mercado externo. De facto, apesar de serem fabricados relógios de mesa com os mostradores na horizontal na Inglaterra de inícios do século XVIII, estes eram mais populares na Alemanha e na Áustria, onde podemos encontrar outros exemplares de relógios-despertadores de pederneira à semelhança deste, como o despertador austríaco que se encontra no British Museum (1897, 0802.1).
Proveniência:
A primeira referência que temos sobre esta peça é pertencendo à coleção Bernal. Ralph Bernal foi um político e colecionador britânico, presidente da British Archeological Society, cuja coleção foi leiloada após a sua morte em 1854, ao declinar o governo britânico a possibilidade de comprar a coleção por inteiro. O leilão foi realizado pela Christie and Manson entre 6 de março e 30 de Abril de 1855, consistindo num total de 4.294 lotes de pintura, porcelana, joalharia, relógios, armaduras, ourivesaria e mobiliário. Este relógio era o lote 3972, tendo sido adquirido em 26 de abril para a coleção Mentmore.
Mentmore, ou Mentmore Towers, é um grande palácio rural em Busckinghamshire, construído no início da década de 1850 pelo Barão Mayer Amschel de Rothschild, que pretendia contar com uma casa próxima de Londres e de outras propriedades dos Rothchild. Em 1977, após vários anos de discussões infrutíferas sobre os impostos de sucessão e o valor do recheio do palácio, toda a coleção – considerada pela Sotheby’s como uma das coleções em mãos privadas mais refinadas de sempre, só superada pelas das famílias reais russa e britânica – foi vendida em hasta pública em Londres.
O relógio de mesa objeto deste estudo – lote 1048 – foi adquirido neste leilão, através do Sr. E. Mannheimer – da Uto Auktions Ag de Zurique que colaborou inúmeras vezes com Medeiros e Almeida -, passando a integrar a coleção da Fundação Medeiros e Almeida.
Samantha Coleman-Aller
Casa-Museu Medeiros e Almeida
Bibliografia:
BAILLE, G.H., Watchmaakers & Clockmakers of the World, Londres: N.A.G. Press Ltd, 1966
DAWSON, P., DROVER, C.B. & PARKES D.W., Early English Clocks, Woodbridge: Antique Collector’s Club, 2003
GUYE, S. & MICHEL H., Time & Space. Measuring Instruments from the 15th to the 19th Century, Londres: Pall Mall Press, 1971
KLAUS MAURICE & OTTO MAYR (Ed.), The Clockwork Universe. German clocks and automata 1550-1650, New York: Neale Watson Academic Publications, 1980
SABRIER, J.C., Le Guidargus de l’Horlogerie de Collection, Paris: Les Editions de l’Amateur, 1982
VV.AA., Britten’s Old Clocks & Watches and Their Makers, Londres: Methuen London Ltd, 1982
Catálogos de venda:
Catalogue of the celebrated collection of works of art from the Byzantine period to that of Louis Seize of that distinguished collector Ralph Bernal (…), London: Christie and Manson, 1855
Mentmore vol. 2, Catalogue of Art and Silver sold on behalf of the Executive of the late 6th Earl of Rosebery and his family, London: Sotheby’s Parke Bernet & Co., 1977
Godfrie Poy (ativo 1718-1750)
1720-30
Inglaterra, Londres
Bronze dourado, prata, ferro e vidro
Alt.10,2cm x Comp.18,5cm x Larg.10,5cm