O Museu possui um conjunto de peças austríacas de finais do século XIX, conhecidas como “esmaltes de Viena” que se destacam pela sua beleza, exotismo e raridade, nomeadamente em coleções de acervos portugueses.
Entre as peças destaca-se, exposto ao centro da sala dos Relógios, uma peça única, com um historial incrível, ainda por desvendar…
Relógio de mesa monumental cuja estrutura que lembra uma composição arquitetónica tipo palácio, elaborada em cristal de rocha, com aplicação de placas de lápis-lazúli e grande profusão de esmaltes polícromos montados em prata, numa riqueza de materiais e decorativa que denuncia, não só a proveniência erudita da peça, como também o período artístico em que foi produzida; o chamado ‘Historismus’ vienense.
Historismus
Ciclicamente na Arte surge a necessidade de recuperar a estética de épocas passadas; é nesse sentido que, em finais do século XVIII, o movimento romântico que traz a redescoberta e revisitação de formas artísticas do passado, dando origem por toda a Europa à corrente artística dos chamados ‘neo’ que atinge o seu pico entre 1840 e o final do século XIX.
No último quartel do século XIX, integrando este espírito, surge na Áustria o movimento estético mais tarde apelidado de Historismus, que se estende da arquitetura às artes decorativas e que vai durar até ao primeiro quartel de 1900.
Durante o Império Austro-Húngaro, a prosperidade do reinado do imperador Francisco José (1848-1916) trouxe o nome de Viena de Áustria para a ribalta internacional. A cidade derrubou os velhos muros e abriu a famosa Ringstrasse (avenida circular), ao longo da qual foram erguidos novos edifícios como ministérios, museus, a Ópera e o Grande Hotel (um dos primeiros no género na Europa inaugurado em 1870), cuja eclética arquitetura espelhava os novos gostos.
Assistiu-se à convivência de edifícios neogóticos, neorrenascença, neomaneiristas, neoclássicos e neobarrocos e a aristocracia europeia acorria a dançar as valsas de Johann Strauss (1825-1899) e a ouvir Brahms (1833-1897) que dirigia, à época, a Wiener Singverein (Sociedade dos Amigos da Música – Coro de Viena) fazendo de Viena uma capital cosmopolita.
Os ‘Esmaltes Vienenses’
Desde meados do século XVI que a ourivesaria austríaca era conhecida pelos trabalhos com esmaltes, fruto da proximidade com um dos centros ourives por excelência; a cidade alemã de Ausburgo (Baviera), onde ourives/esmaltadores como David Altenstetter (c. 1547-1617) afirmaram esta tipologia.
Durante o império Austro-Húngaro, entre 1870 e 1910, essa tradição foi recuperada aliando os esmaltes – pintados ou aplicados com a técnica champlevé -, à prata e ao ouro vindos da Transilvânia e ainda combinando novos materiais como o cristal de rocha (finamente lapidado), o lápis-lazúli e gemas variadas. Esta combinação de materiais vai caraterizar uma produção carregada de novo vigor que ficou conhecida como ‘esmaltes vienenses’.
A inspiração na centúria de 1500-1600, que era então conotada com o bom gosto e sofisticação, aliada a uma aproximação aos novos esquemas de padrões e cores que se estavam a seguir a nível da decoração de interiores, vestuário, artes gráficas, etc., garantiu o sucesso desta tipologia, cujas peças eram apresentadas nas feiras internacionais (como na Grande Exposição de 1851 que decorreu no Palácio de Cristal em Londres), não como cópias revivalistas como se fazia em França e na Alemanha, mas como ‘peças modernas’, contribindo o sucesso da sua divulgação por toda a Europa.
Em muitas destas peças, a linguagem decorativa aproxima-se já do vocabulário de cores fortes e linhas ondulantes da Secessão (a Arte Nova austríaca), como é o caso do relógio da coleção, nomeadamente na paleta de esmaltes que introduz novos coloridos – amarelos e alaranjados, verdes claros e turquesa.
No âmbito da produção de esmaltes vienenses, produziram-se muitas peças – essencialmente decorativas – de pequena e média dimensão, como pequenos relógios de mesa (o acervo possui diversos exemplares), jarras, taças, urnas, salvas e figuras diversas que se encontravam à venda nas muitas lojas de Viena.
Existe outra tipologia, que se enquadra nas chamadas ‘peças de aparato’, que inclui naves; centros de mesa; conjuntos de chaminé – as garnitures -; cofres ou cornos de libação (a coleção da Casa-Museu conta com alguns exemplares), que denunciam uma encomenda erudita ou seja, feita para encomendadores específicos que pagam para a sua realização que já implica custos elevados.
O relógio monumental – que enforma toda a tradição do trabalho dos esmaltes austríacos – é, porém, uma peça de exceção tanto pelas suas proporções (que implicam uma maior quantidade de materiais) como pela singularidade da tipologia que, tanto quanto nos é dado a conhecer, é única. Implica certamente uma encomenda específica, um design feito a pedido, iconografia especificamente identificada, materiais escolhidos com rigor e artesãos de primeira qualidade tanto ourives-prateiros, como esmaltadores, como relojoeiros.
O Relógio
A composição que alberga o relógio desenvolve-se em quatro corpos em altura; o primeiro, a base, é composto por seis pernas quadrangulares em cristal de rocha estriado, terminando num elemento cujas faces se decoram com molduras em prata e esmaltes que enquadram ao centro uma placa retangular de lápis-lazúli. Destes elementos arrancam os pés que assentam em bases quadrangulares em prata decoradas com quatro botões em lápis-lazúli e conjuntos de godrões em esmaltes amarelo e laranja escuro. Seis grinaldas de flores e folhagem de grande realismo (destacáveis) em esmaltes polícromos penduram-se entre as pernas completando este corpo.
O segundo corpo assenta numa larga base oitavada, em prata cinzelada e montada com várias placas de cristal de rocha gravado com elaborados enrolamentos vegetalistas, sendo percorrida no bordo exterior por friso de pequenas flores em esmaltes branco e verde. Nesta base assenta uma caixa/aquário octogonal com estrutura em prata cinzelada e com painéis de cristal de rocha gravados que alberga a máquina do relógio cujo mecanismo pode ser visto de todos os lados e ao qual se acede por portas colocadas ao centro da composição – em termos de relojoaria, a máquina não tem qualquer relevância. A caixa central é rematada na base por um colorido friso de enrolamentos vegetalistas semeado por mascarões de sabor renascentista, típicos do trabalho de esmaltes desta época e por um friso superior de arcadas entrelaçadas em esmaltes coloridos. Quatro dos lados são revestidos com duas placas de lápis-lazúli verticais emolduradas por frisos de esmaltes brancos, do centro das quais se destacam uns tondos de onde sobressaem cabeças de carneiro em prata e esmaltes. A máquina está ainda ladeada por seis colunas (no enfiamento das da base) em cristal estriado cujos topos e bases são envoltos por elementos retangulares em prata e esmaltes que emolduram um centro em lápis-lazúli à semelhança das inferiores.
O duplo mostrador do relógio que marca somente as horas e os minutos encontra-se no terceiro corpo inserido numa espécie de torreão de topo semicircular podendo ser visto dos dois lados; um dos mostradores é em esmalte pintado apresentando numeração romana sendo o outro em metal dourado com numeração árabe (os mostradores são surpreendentemente pobres para a opulência da peça). O torreão é revestido no topo com placas de cristal de rocha lapidado e nas frentes com placas de lápis-lazúli emolduradas por frisos de prata decorados com elementos em esmalte branco que emolduram os mostradores. A ladear os mostradores, duas campainhas revestidas a prata trabalhada em vazados, encimada por pináculos de lápis-lazúli.
O torreão é ladeado por quatro colunas estriadas em cristal de rocha que sustentam o último corpo tendo ainda nos lados, duas urnas em cristal de rocha encimadas por ramos flores em esmaltes polícromos.
A composição é rematada num quarto nível com um pavão em cristal de rocha (pavão branco) representado com a cauda em leque com as caraterísticas penas gravadas no cristal, patas, debruado da cauda e penacho na cabeça em prata dourada e ostentoso colar em prata dourada debruado com esmaltes intercalados com aljôfares e pedras semipreciosas com um pendente em lágrima. O pavão assenta em base oval de onde partem quatro passadiços em semicírculo em cristal de rocha (apresentando montados em prata cinzelada, que se terminam em quatro peanhas encimadas por quatro delicadas figuras femininas sentadas representando as quatro estações do ano, reconhecíveis pelos atributos: foice e espigas – o outono; cornucópia e flores – a primavera; cesto com frutos – o verão e uma figura com um manto pela cabeça que simboliza o inverno.
A chave para dar corda encontra-se exposta junto ao relógio, a pega da chave é decorada no mesmo estilo da peça com esmaltes coloridos montados em prata representando dois animais marinhos com caudas enroladas.
Informação técnica: Fonte de energia – corda. A única complicação é sonora, tocando horas e quartos, em duas campainhas separadas, com 3 tambores. Escape de âncora, Balanço, Espiral plano. O estado geral da máquina é bom; funciona quando se dá corda.
O relógio encontra-se exposto na Sala dos Relógios, destacando-se ao centro, em vitrina própria com base e perfil em talha dourada.
As Marcas
A peça está marcada em diferentes sítios tanto com as marcas de ourives como as marcas de garantia (toque da prata) e contrastaria (cidade).
Marcas de autor:
LW – Leopold Weininger, ativo 1883-1922
A letra ‘L’ aparece virada de costas para o ‘w’ levando a que o ourives tenha sido confundido, aquando da venda, com o ourives austríaco Johnann Wastl, cuja marca é um ‘JW’ (ativo 1837-1865).
KR – Karl Rössler, ativo c. 1890-1912/6
Marcas de garantia/contrastaria:
Perfil de Diana com crescente de lua na testa, o ‘A’ (de Viena) debaixo do nariz e ‘3’ na nuca (toque da prata), inscrito em perímetro pentagonal – Viena 1866-1922.
A – indica a cidade de Viena – a partir de 1886.
Cabeça de cão 3 – marca de Viena 1862-1922, toque da prata de 800 milésimas (800/1000)
Os Ourives
Leopold Weininger (1854-1922) foi um ourives judeu que trabalhou em diversas moradas em Viena (VI e VII) cuja marca aparece registada entre 1883 e 1908. Em 1909 Weininger foi mencionado na ‘Branchenverzeichnis der Meisterlisten’ (diretório de mestres) como especialista em trabalhos com esmaltes e imitações do antigo tendo o seu trabalho sido reconhecido ainda em vida. (A Casa-Museu possui ainda um Cofre de aparato da sua autoria). Teve sete filhos sendo um deles o filósofo Otto Weininger (1880-1903).
Karl Rössler (Roesler, Roessler, Rösler) foi um ourives de ouro e prata que trabalhou em Viena entre 1870 e 1912/16. Os seus trabalhos com esmaltes vienenses são raros e considerados de grande qualidade. (A Casa-Museu possui outras duas peças da sua autoria – Guarnição de Chaminé com torre de relógio e dois candelabros e uma Ave Bicéfala, peças expostas na Sala Luís XIV).
Proveniência
Esta peça coloca vários enigmas quanto à sua encomenda original e proveniência.
De acordo com a pouca documentação existente nos arquivos do Museu, o relógio pertenceu à coleção de Anton Meister, E.U.A., um abastado médico e colecionador de arte nova-iorquino que morreu em 1965.
Na época 1965/66, o relógio foi vendido em leilão da Sotheby’s de Nova Iorque, a 31 de Março de 1966, conforme registado (com imagem) na publicação anual “Ivory Hamer 4, The Year at Sotheby’s & Parke-Bernet 1965-66” (Longmans, p.253).
Adquirido em Londres, em local desconhecido, pelo antiquário Wolf ( Steinhardt, antes de 1975, não existindo documentação referente à compra. Este antiquário, com loja no Beco da Bicha nº3 em Lisboa, comprava frequentemente obras de arte no estrangeiro para Medeiros e Almeida.
Devido ao tipo de trabalho, claramente de origem austríaca, a pedido de Medeiros e Almeida, Steinhardt contactou o diretor, em meados dos anos 70 do Museu do Relógio (Wien Uhrenmuseum) de Viena de Áustria, Heinrich Leonardi, tendo-se deslocado posteriormente à capital da vienense para tentar obter informações sobre o relógio.
Da correspondência (incompleta, não datada) existente nos arquivos da Casa-Museu, trocada entre o antiquário e Leonardi, conclui-se que este não tinha conhecimento da existência da peça, sendo sua opinião que se podia, “sob reserva”, estabelecer relação com uma possível encomenda por parte do rei Luís II da Baviera (1845-1886).
Esta assunção baseia-se em diversos factos relacionados com o gosto pelo trabalho de esmaltes vienenses na Alemanha, nomeadamente na Baviera, devido à proximidade geográfica com a Áustria e nos gostos do monarca que estariam expressos neste relógio com tipologia de arquitetura que evoca os castelos por si mandados erguer e nomeadamente na presença do espetacular pavão que encima a composição, que era uma das temáticas decorativas recorrentemente utilizadas nas decorações de Luís II (o palácio de Linderhof tem um famoso trono em pavão no pavilhão mourisco).
O caráter faustuoso da peça, veja-se as dimensões fora de normal e a riqueza dos materiais, concorre igualmente para justificar uma possível encomenda real, mas os dados são escassos para que se possa produzir uma afirmação.
Uns anos mais tarde, em 1985, Steinhardt escreve a Medeiros e Almeida dando conta das suas investigações em Viena de Áustria, que não foram bem sucedidas.
Informa ainda que o relógio teria sido comprado (em Londres?), a uns irmãos desavindos de Nova Iorque, de nome Hartman, que, por sua vez, o teriam adquirido na América Latina. Esta afirmação é problemática pois é contrária ao único facto que está documentado; a pertença ao colecionador americano Anton Meister e posterior venda em leilão da Sotheby’s após a sua morte.
Nesta perspetiva é plausível alvitrar a hipótese da existência de duas peças semelhante se bem que, neste caso, não é conhecido (pelo menos pelo Museu) o paradeiro do segundo exemplar.
As investigações não levaram pois a grandes conclusões não tendo sido inequivocamente esclarecidos nem a encomenda, nem o percurso da peça até ter sido adquirida pelo colecionador.
A opinião a propósito da excecionalidade e raridade da peça é, porém, unânime.
Maria de Lima Mayer
Casa-Museu Medeiros e Almeida
NOTA: A investigação é um trabalho permanentemente em curso. Caso tenha alguma informação ou queira colocar alguma questão a propósito deste texto, por favor contacte-nos através do correio eletrónico: info@casa-museumedeirosealmeida.pt
Bibliografia
GOMBRICH, Ernst H.; A História da Arte, Lisboa: Edições Público, 2005
KAPFINGER, Otto; The Vienna Secession, from temple of art to exibition hall, Ostfildern-Ruit: Gerd Hatje, 1997
SPEEL, Erika; Painted Enamels – An Illustrated Survey 1500-1920, Aldershot: Burlington, Lund Humphries, 2008
WILLIAMS, Haydn, CLARKE, Julia; Enamels of the World 1700-2000: the Khalili collections, London: The Khalili Family Trust, 2009
Leopold Weininger, ativo c.1883-1922 Karl Rössler, ativo c.1870-1912/26
1883-1922
Viena, Áustria-Hungria
Cristal de rocha (hialino), prata, prata dourada, esmaltes, lápis-lazúli, aljôfares, rubis, pedras semipreciosas e bronze dourado
Alt. 110 x Larg. 60 x Prof. 39 cm