Sansão a Matar um Filisteu, finais séc. XVII/início séc. XVIII

Sansão a Matar um Filisteu, finais séc. XVII/início séc. XVIII

“Apanhando uma queixada ainda fresca de um jumento, matou com ela mil homens. Sansão disse: Com a queixada dum jumento destrocei os inimigos e com a queixada dum jumento mil homens matei!” (Jz.15, 15-16)

 

A história de Sansão (segundo a Antigo Testamento):

Desde o nascimento que Sansão foi preparado por Deus para livrar Israel do jugo dos Filisteus tendo recebido o dom de uma força descomunal.

 

Em idade casadoira, Sansão apaixonou-se pela filha de um filisteu. Apesar dos pais não aprovarem a união, como esta não ia contra a lei de Deus (os filisteus não eram uma das sete nações condenadas ao extermínio), os três foram visitar a noiva. No caminho Sansão matou um leão com as suas mãos. Uns dias depois, a caminho da boda, ao passarem pela carcaça do leão verificaram que esta tinha mel que Sansão e seus pais comeram.

 

Durante a festa Sansão lançou aos seus trinta companheiros um enigma a propósito do mel surgido na carcaça. Não sabendo resolver o enigma, os homens convenceram a noiva a revelar a solução, o que despertou a raiva de Sansão que matou trinta homens de uma vez e abandonou a noiva. Esta, por sua vez foi entregue pelo pai a outro homem.

 

Após uns dias Sansão decidiu voltar para a esposa, quando percebeu o sucedido, enfureceu-se e vingou-se deitando fogo às colheitas dos filisteus que, por sua vez mataram a mulher e o seu pai por serem os causadores de tamanha desgraça.

 

Desgostoso Sansão foi viver para uma fenda numa rocha até que o seu próprio povo de Judá o tentou entregar aos filisteus. Nesse momento, o Espírito do Senhor desceu sobre ele e com uma queixada de um jumento matou mil filisteus. Após ter saciado a sede de água que jorrou da queixada de burro, a paz desceu sobre Israel tendo Sansão reinado por 20 anos.

 

A história de Sansão contada no Antigo Testamento no livro dos Juízes 15, foi fonte de inspiração para a arte, nomeadamente a escultura e a pintura, desde tempos remotos.

 

Iconograficamente, a representação de um homem a matar outro com uma queixada de burro pode também ser interpretada como a passagem bíblica em que Caim mata o seu irmão Abel (Livro dos Génesis 4, 8). Deste episódio, se bem que a queixada de burro não é mencionada, existem inúmeras representações em que Caim surge com uma queixada na mão.

 

‘Sansão matando um Filisteu’ de Giambologna:


Para se falar do grupo escultórico em análise, é inevitável falar-se da obra que o inspirou; uma estátua em mármore branco realizada pelo escultor Giambologna (Douai 1529 – Florença 1608).

 

Em 1559, Cosimo I de Médicis lança um concurso para uma fonte de Neptuno a instalar na Praça della Signoria em Florença. O ‘Neptuno’ do jovem Giambologna não ganha (ganhou Bartolomeo Ammannati (1511-1892)), mas chama a atenção do escultor Leone Leoni (1509-1590) que escreve a Miguel Ângelo (1475-1564) louvando o modelo. Em 1560, Francesco de Médicis encomenda então a Giambologna uma fonte incluindo ao centro um grupo escultórico em mármore branco figurando Sansão a matar um Filisteu para os jardins do seu palácio florentino, Casino Mediceo.

 

A inspiração de Giambologna apoiou-se em obras helenísticas representando cenas de luta como o grupo ‘Lutadores’ (Galerias Uffizi, Florença), em conjuntos como ‘Hercules e Anteu’ de Pollaiolo (1475, Museu Bargello, Florença) ou ‘Hercules e Caco’ de Baccio Bandinelli (c.1530, Praça della Signoria, Florença) e, principalmente, num grupo representando ‘Sansão a matar dois Filisteus’ projetado por Miguel Ângelo em 1502 (para ladear, com a estátua de ‘David’, as portas do Palazzo Vecchio) que nunca passou da fase de molde e do qual se conhecem apenas algumas provas de pequena escala em bronze.

 

Em 1610 o grão-Duque da Toscânia ofereceu a fonte ao Duque de Lerma, primeiro-ministro de Filipe III de Espanha e em 1623, aquando de uma visita a Espanha do Príncipe de Gales, a estátua foi-lhe oferecida tendo a bacia da fonte permanecido em Aranjuez. Durante a transferência para Inglaterra, o grupo escultórico foi erradamente identificado como ‘Caim e Abel’ – provavelmente por a queixada de burro se ter partido – sendo inúmeras as referências como ‘Caim e Abel’ na literatura e em inventários ingleses. Em Inglaterra, a fonte voltou a mudar de mãos, tendo sido oferecida ao Duque de Buckingham e após a venda de Buckingham House, foi adquirida pelo rei Jorge III que a instalou em Hovingham Hall pertencente ao seu amigo Thomas Worsley (1710-1778). Só após a estátua ter sido adquirida em 1854 pelo museu londrino Victoria & Albert e ter sido estudada, é que se repôs o nome original. Ainda hoje, esta é a única obra de Giambologna de grande porte existente fora de Itália. (veja em http://collections.vam.ac.uk/item/O14761/samson-slaying-a-philistine-figure-group-bologna-giovanni/)

 

Decorrente deste facto, existem cópias inglesas deste modelo, identificadas como ‘Caim e Abel’ como é exemplo o grupo escultórico exposto nos jardins do Palácio Nacional de Queluz, da autoria do escultor inglês John Cheere (1709-1787), datado de 1756.

 

Em Inglaterra conhecem-se vários exemplares como os de Chatsworth (atribuído a Richard Osgood), de Delaval Hall Rear Gardens, Harrowden Hall, Wimpole Hall, Trent Park House (atribuído a Cheere)

 

Giovanni Bologna, Giambologna, Jean de Boulogne:
Nascido em 1529 em Douai, na altura pertencente à Flandres, o artista chega a Roma em 1550 para completar a sua educação artística. No regresso, em 1555, visita Florença onde decide ficar trabalhando nomeadamente para os Duques de Médicis. Inspirado pela estética greco-romana em voga à época devido às contínuas descobertas em escavações arqueológicas, Giambologna criou modelos em mármore e bronze de grande escala, mas também pequenas estatuetas de bronze que eram vendidas para toda a Europa. 
Conhecido pela mestria tanto no desenho como nas soluções técnicas, Giambologna tornou-se o nome de referência do maneirismo florentino, situando-se o seu trabalho entre o de Miguel Ângelo e o do vindouro Gian-Lorenzo Bernini (1598-1680).

 

A estatuária em chumbo:

A partir de finais do século XVII, a moda dos jardins ‘à francesa’ cria um florescente mercado para a estatuária e decoração de exterior. Para além da produção em mármore e pedra, desenvolve-se o trabalho em chumbo, um material apreciado tanto pela facilidade de execução, como pela durabilidade (sendo resistente às intempéries), como pelo baixo custo do material e fácil reprodução. Desafiando os custos de produção e falibilidade das estátuas em mármore e pedra, o uso de chumbo em Inglaterra desenvolveu-se grandemente a partir dos finais de seiscentos e durante a centúria de setecentos, indo de encontro à grande demanda que surge com a adaptação de jardins à francesa nas casas de campo inglesas onde se criaram grandes terraços e esplanadas que se povoavam com grandes fontes e estátuas mas também com urnas, vasos e esculturas de pequeno porte.

 

A técnica do trabalho em chumbo foi introduzida em Inglaterra por artistas dos Países Baixos onde existia grande tradição do trabalho em escultura. Entre os mais famosos destaca-se Arnold Quellin (1653-1686) que se estabeleceu, como muitos outros, numa oficina na zona de Hyde Park em Londres. Um dos seus alunos – que viria a casar com a sua viúva -, o belga John Van Nost (1687-1710) tornou-se o mais famoso artista do género no seu tempo. O grupo escultórico da Casa-Museu está atribuído a este artista.
A popularidade do ‘Grand Tour’ trouxe para Inglaterra o gosto pelos modelos clássicos e pela escultura italiana e francesa coeva tendo os artistas povoado os jardins com figuras de Apolo, Vénus, Mercúrio, Primavera e Flora, Baco, Pomona e Minerva bem como pastores, arlequins, faunos e mouros. A maior parte destas figuras era pintada a imitar pedra ou mesmo modelos reais ou ainda dourada.

 

O movimento paisagista inglês de finais do século XVIII trouxe o gosto por uma paisagem menos elaborada, tendo o costume de adornar os parques com estátuas sido quase abandonado tendo a maior parte das peças em chumbo sido derretida para diversos fins, nomeadamente para munições aquando da Guerra Anglo-Americana de 1812. Em finais do século XIX, a estatuária de chumbo foi novamente adotada tendo surgido grandes fundições como é o caso da empresa H. Crowther, de Middlesex, ainda existente à época em que a peça foi adquirida por Medeiros e Almeida, já sob o nome Crowther of Syon Lodge.

 

O grupo escultórico da Casa-Museu:

O grupo escultórico que é uma cópia exata do original de Giambologna, é composto por duas figuras; Sansão, representado em pé subjuga o seu adversário agarrando-lhe os cabelos e ameaçando-o com uma queixada de jumento que brande com a mão direita. O seu enorme corpo traduz a força que possui e o seu gesto transmite a raiva que o move. O Filisteu, que aqui representa todo o seu povo, agacha-se aos pés de Sansão surgindo por entre as suas pernas e contorcendo-se dominado pela força do adversário, na mão direita segura uma pedra com a qual se tenta defender.

 

O terceiro corpo que, no projeto de Miguel Ângelo jazia morto no chão, foi esquecido dificultando a tarefa do artista que ficou com menos base de sustentação para o grupo escultórico que assim se sustenta em apenas cinco pontos. Referindo ainda os recursos a que a escultura recorre para se sustentar, são de realçar as hábeis perfurações que o escultor criou ao posicionar o contorcionado corpo do Filisteu no chão, revelando o seu virtuosismo ao enfrentar o desafio de uma base mais escavada, com menos apoio do material.

 

A composição justifica bem a noção de ‘grupo escultórico’ pois o entrosamento das figuras e o seu eficaz posicionamento reúne-as num só grupo que é hábil suficiente para nos proporcionar, ao invés do normal, uma vista principal, mas também três perfeitas leituras laterais. 
Neste projeto concretizam-se, pois, os ensinamentos do mestre Miguel Ângelo no trabalho do volume piramidal, no efeito de ‘chama’ dado pelo entrosamento e na quase ‘dança’ dos corpos que imprimem movimento ao conjunto, no rigor anatómico e no equilíbrio das proporções que pelo facto de ultrapassar um pouco a escala real, confere grandiosidade e dramatismo ao conjunto transmitindo com rigor a sua mensagem.

 

Proveniência:

Pertenceu à coleção da Hinton House, Hinton St. George, Somerset, Inglaterra, propriedade dos Condes Poulett, vendida em 1968 pelo 8º e último Lord Poulett; George Amias Fitzwarrine Poulett (1909-1973)

Adquirida ao antiquário Crowther of Syon Lodge, Middlesex, Inglaterra, em Janeiro de 1972, por £ 1.000 (sem a base).
Ao chegar a Portugal, a peça foi consolidada pelo escultor António Duarte.

 

Maria de Lima Mayer

Casa-Museu Medeiros e Almeida


Bibliografia:

AVERY, Charles; V&A Materpieces, Londres: Museu Victoria & Albert, 1978

AVERY, Charles; Giambologna, Sculptor to the Medicis (1529-1608) his style and sources, in: Apollo, Set, 1978

Webgrafia:

A Biographical Dictionary of Sculptors in Britain, 1660-1851 – https://www.henry-moore.org/hmi/library/biographical-dictionary-of-sculptors-in-britain

California Digital Library: WEAVER, Lawrence, Sir; English leadwork, its art & history, Londres: B.T.Batsford, 1909 – 
https://archive.org/details/englishleadworki00weav

Museu Victoria & Albert, Londres – http://www.vam.ac.uk/content/articles/s/giambolognas-samson-and-a-philistine/

Artista

John van Nost (1687-1710)

Ano

Finais séc. XVII/início séc. XVIII

País

Inglaterra

Materiais

Chumbo coberto de gesso

Dimensões

Alt. 191cm. x Comp. 93cm x Larg. 70cm. (sem base)

Category
Escultura Inglesa