DESTAQUE MAIO 2023
Serviço de Chá e Café “Peregrinos da Ilha de Cítara”
Que afortunados estes peregrinos
Que tenham uma viagem prazerosa
O Amor guia os seus passos, Baco caminha ao seu lado,
Para a ilha de Vénus, E lá desfrutar a sua estadia [1]
“Os peregrinos da ilha de Citera” tornou-se um tema popular no início do século XVIII, sendo representado em gravuras, pinturas, no teatro, na ópera e também na porcelana, como neste serviço de chá e café em porcelana da China de exportação, habitualmente em exposição na Sala das Pratas do Museu.
O Serviço de chá e café da Coleção Medeiros e Almeida
Em porcelana branca e decoração em grisaille, as 36 peças que integram este serviço de chá e café apresentam todas um esquema decorativo semelhante: uma reserva principal com a representação dos “Peregrinos da ilha de Citera”, segundo gravura de Bernard Picart (1673-1733) – onde as carnações das figuras estão realçadas a cor – e reservas secundárias, que seguem formatos característicos da porcelana de Meissen, com típicas paisagens chinesas em grisaille, sépia e com apontamentos a verde. Intercalados entre estas reservas, pequenos medalhões circulares contendo flores de quatro pétalas, com o centro destacado a dourado.
Prato raso, pormenores (FMA 1560) – Museu Medeiros e Almeida
Preenchendo praticamente todo o espaço restante das peças, como em pano de fundo, dois tipos de reticulado característicos da porcelana chinesa: uma variante do conhecida como padrão “favo de mel florido” e o dito padrão “diamantado de grão de arroz” [2].
Exemplos de padrões na porcelana chinesa segundo W. G. Gulland e pormenor dos padrões numa peça do serviço de porcelana da Coleção Medeiros e Almeida
Embora o catálogo do leilão da Soares & Mendonça, onde este conjunto foi adquirido por António de Medeiros e Almeida a 13 de fevereiro de 1965, refira unicamente as 36 peças que, ao dia de hoje, fazem parte da coleção, não pode ser descartada a possibilidade de, originalmente, o serviço ter sido constituído por um número maior de objetos. Na atualidade, integram este serviço um bule, uma cafeteira, uma leiteira, uma taça de pingos, um frasco de chá, um covilhete para colher, quatro chávenas com asa para café e os seus respetivos pires, dez taças de chá e os seus pires, um prato raso e um prato fundo [3].
É frequente que, como no caso em estudo, num mesmo serviço coexistam objetos para chá e café, encontrando-se inclusive serviços para chá, café e chocolate que, em ocasiões, formavam parte de serviços de mesa completos [4]. Embora em muitos serviços de chá e café os pires fossem usados indiferenciadamente para acompanhar as chávenas de uma ou outra bebida, neste conjunto cada chávena tem o seu correspondente prato. As chávenas distinguem-se pela presença ou não de asa; nas de café (neste serviço de maior tamanho e paredes mais retas) a asa servia para afastar a mão, protegendo-a do calor da bebida, enquanto que as chávenas de chá (que apresentam no interior, no fundo, uma orquídea dourada estilizada) seguem formas orientais e não têm asa, o que leva a pensar que o líquido era bebido já morno.
O bule, de pequeno tamanho, tem formato globular, pega simples, bico longo e reto e tampa em cúpula pouco abaulada. Esta tipologia de bule é de origem oriental, mas foi rapidamente adotada na Europa, sendo muito comum na porcelana chinesa de exportação de meados do século XVIII, deixando de estar em uso após 1775 [5]. A decoração desta peça, seguindo o programa anteriormente mencionado, aparece concentrada à volta do bojo e na tampa, enquanto que a asa e o bico, sobressaindo em lados opostos da barriga, se destacam a branco, apenas com alguns apontamentos a dourado, assim como dourada será também a pega em forma de lágrima que remata a tampa, tal como na cafeteira, na leiteira e no frasco de chá. No interior, na base do bico, crivo fixo, também em porcelana, para suster as folhas do chá.
Bule e pormenor do interior (FMA 1553) – Museu Medeiros e Almeida
A cafeteira, de corpo cónico e reto, tem tampa cupuliforme e asa em “C”, semelhante ao do bule, mas mais alongada, situada em ângulo reto em relação ao bico, que tem forma de “S”. Este tipo de formato, com a asa e o bico em ângulo reto, baseia-se nos primeiros modelos europeus de cafeteiras, que bebiam da tradição francesa e que, rapidamente, serão ultrapassados pelo gosto inglês, mais prático, de alinhar estes dois elementos em lados opostos do corpo [6].
O frasco de chá, com corpo em balaústre e tampa pouco abaulada, apresenta na parte inferior, junto da base, enrolamentos em relevo pintados a dourado, elemento decorativo comum na altura. Estes recipientes, que serviam para guardar as folhas de chá, eram parte integrante de grande parte dos serviços de chá da época. Segundo alguns autores, estes frascos podem ter adquirido a sua forma a partir dos exemplares em prata presentes nos serviços de toilette de senhora, uma vez que não existiam peças comparáveis na porcelana oriental. Esta hipótese baseia-se no fato de o chá, na altura, ser servido maioritariamente em ambientes íntimos, como os boudoirs, onde estaria também o toucador. Esta teoria também é proposta para os pratos ou travessas para colher presentes nos serviços de chá (como o covilhete para colher deste serviço), cuja origem estaria nos pequenos tabuleiros de rapé que também faziam parte dos serviços de toilette femininos [7].
Cafeteira (FMA 1557), frasco de chá (FMA 1555) e leiteira (FMA 1556) – Museu Medeiros e Almeida
O prato raso é a única peça do conjunto que, para além da decoração acima referida, apresenta um friso de pontas de setas, em dourado e rouge-de-fer, bordeando o covo. Este motivo foi desenvolvido em Cantão, a partir de formas ornamentais tipicamente chinesas, para decorar a porcelana de exportação e, provavelmente devido às semelhanças formais entre as pontas de seta e a flor-de-lis, teve um grande êxito na Europa, transformando-se num motivo recorrente.
A porcelana da China de exportação
O serviço de chá e café aqui em estudo, integra-se dentro da chamada porcelana da China de exportação [8] e, tal como afirmou John Goldsmith Phillips (1907-92), conservador no Metropolitan Museum de Nova Iorque durante 41 anos, “a história da porcelana da China de exportação (…) é em parte uma história chinesa, pois foi na China que estes objetos foram produzidos; mas é também uma história europeia, na medida em que foi para o seu uso em Europa que estas peças foram fabricadas” [9].
A porcelana da China já era conhecida na Europa, mas são a chegada do navegador Jorge Álvares à ilha de Tamão, em 1513, e a abertura da rota marítima pelos portugueses, que despoletam verdadeiramente o comércio entre oriente e ocidente e, com este, o interesse neste novo material [10]. Ainda durante o século XVI existem exemplos de porcelanas encomendadas especificamente para Portugal e decoradas com uma combinação de motivos chineses e portugueses (nomeadamente brasões, mas também simbologia real e religiosa), como o testemunham várias peças da Coleção Medeiros e Almeida pertencentes ao restrito núcleo das chamadas “primeiras encomendas” [11].
Ao comércio de porcelana iniciado pelos portugueses, une-se o desenvolvido por holandeses, ingleses, espanhóis, suecos, … cada um com características próprias e adaptadas às suas realidades, mas, maioritariamente, objetos para a mesa (terrinas, travessas, pratos, molheiras, …, serviços de café, chá, chocolate), algumas peças para o asseio (frascos, bidés) e, mais raramente, peças decorativas. Às “primeiras encomendas” segue-se, a partir do 2º quartel do século XVII, o pedido de formatos específicos a partir de modelos de pratas e cerâmicas europeias que eram enviados à China e, já no século XVIII, o envio de gravuras (de carácter religioso, mitológico, literário, histórico, topográfico, etc.) para serem copiadas pelos artistas chineses e usadas como motivos decorativos [12].
Produzidas maioritariamente nos fornos de Jingdezhen, na província de Jiangxi, muitas das porcelanas fabricadas para exportação passam a ser decoradas, a partir das primeiras décadas do século XVIII (e especialmente a partir de 1740), em Cantão, o único local da China a que os comerciantes estrangeiros tinham acesso, o que assegurava uma maior celeridade na resposta a encomendas específicas, dispensando o uso de intermediários e evitando erros de interpretação. Estas peças eram maioritariamente decoradas em esmaltes da família rosa, mas também será comum a decoração em grisaille, tal como a do serviço da Coleção.
A decoração em grisaille [13]
A decoração em grisaille (do francês gris, cinzento) ou encre-de-chine (tinta-da-china), faz referência à decoração monocromática em tons acinzentados, realizada sobre o vidrado, a partir de esmaltes pretos ou castanhos-escuros. É frequente o uso de ouro e esmalte rouge-de-fer para destacar alguns pormenores e, nomeadamente, nas cercaduras. Em ocasiões, como se pode observar em algumas das reservas deste serviço, existem também apontamentos a sépia ou outras cores, como o verde.
A decoração em grisaille (em chinês mocai) pretendia imitar a estética própria das gravuras que serviam de modelo e, por isso, salvo raras exceções, era maioritariamente usada na porcelana de exportação, alcançando grande popularidade entre 1740 e 1760, caindo depois em desuso, até gozar um renascimento nos anos finais da dinastia Qing.
O mais recuado documento da tentativa de decoração da porcelana da China em grisaille é de janeiro de 1722, data da carta enviada pelo padre francês François-Xavier d’Entrecolles (1664-1741), missionário jesuíta instalado em Jingdezhen, onde relata as primeiras tentativas falhadas do uso da tinta-da-china [14]. Mas será só após a nomeação de Tang Ying (1682-1756) como Superintendente dos fornos Imperiais de Jingdezhen, em 1728, que esta técnica é finalmente dominada.
Os Peregrinos da ilha de Citera
A ilha de Citera, situada entre o Peloponeso e Creta – desde a antiguidade encruzilhada de marinheiros e comerciantes – era na mitologia grega um lugar sagrado e devoto à deusa Afrodita. Segundo Hesíodo, na sua Teogonia (v. 188-200), Afrodita, após ter sido gerada no mar, foi levada pelos zéfiros até a ilha de Citera, considerada por este motivo como uma paragem consagrada ao amor e ao prazer.
O século XVIII conheceu uma transformação da expressão do sentimento amoroso em França [15], transformação que se verá refletida nas artes, nomeadamente na chamada “art galant” (arte galante) criada pelo pintor francês Jean-Antoine Watteau (1684-1721). Neste novo contexto, o mito de Citera, agora transformado nos “peregrinos da ilha de Citera” e entendido como a viajem (peregrinação) em busca do lugar utópico do amor, torna-se popular, tendo sido abordado em gravuras, em pinturas, no teatro, na ópera, no ballet e na literatura. Paul Tellement (1642-1712) já tinha publicado em 1663, “Voyage de l’isle d’amour” (Viagem à ilha do amor), umas memórias de viagem imaginárias que são reeditadas em 1665 e em 1713. Em 1700, foi encenada em Paris, por vez primeira, a comédia do dramaturgo francês Florent Dancourt (1661-1725), “Les Trois Cousines” (As três primas), onde três jovens empreendem a viagem a Citera. Entre os gravadores da época, este tema também é abordado, tanto em gravuras independentes destinadas a colecionadores, como em gravuras cujo intuito era servir de base para a decoração de caixas, leques e outros pequenos objetos.
É curioso constatar como um tema de raiz mitológica e caráter sensual é associado, já desde finais do século XVII, aos peregrinos de Santiago, de quem os peregrinos de Citera assimilam grande parte da iconografia. Isto apresenta-se como evidente nas obras de Bernard Picart, como o desenho de 1708, em que um cortesão serve vinho a uma dama, ou na gravura do mesmo autor, “Peregrinos da Ilha de Citera”, distribuída nesse mesmo ano pelo editor sediado em Paris Gaspard Duchange (1662-1757). Em ambas representações as personagens possuem os característicos atributos próprios dos peregrinos (capa, chapéu, bordão, cabaça, concha de vieira), convivendo ao mesmo tempo com símbolos ou atitudes de cariz erótico, como a presença de um cupido com uma tocha e (no desenho) uma aljava às costas; as tochas cruzadas e o coração flamejante nas lapelas da capa do homem e no pendente da mulher; as esculturas de Eros e Afrodita no interior do “relicário” que pende da cintura da figura feminina e que são uma referência direta ao amor e à ilha de Citera; o olhar entre o casal; o modo como ele serve a bebida da cabaça na concha que ela segura (e que, na gravura, já não será uma concha de Santiago, mas sim uma caracola, o que é visto por alguns autores como símbolos explícitos de carácter sexual) [16].
Desenho de Bernard Picart – Victoria & Albert Museum (Nº Inv. D.1101-1900) / Gravura “Pelerins de l’Isle de Cithere”, de Bernard Picart – Rijksmuseum, (Nº Inv. RP-P-1921-273)
A gravura “Pelerins de l’Isle de Cithere”, de Picart (inicialmente concebida para a coleção de 25 temas para decorar caixas de rapé, daí o seu formato oval), tornou-se tão popular que foi não só motivo comum na cerâmica europeia (com exemplares realizados pela fábrica de Meissen em c. 1730-1735), como também na porcelana da China de exportação, tendo sido reproduzida tanto em decoração polícroma, como em grisaille ou camaïeu magenta [17]. Este tema foi do agrado dos artistas chineses, amantes de pinturas licenciosas e, por isso, predispostos para a cópia de cenas galantes europeias.
Prato raso (FMA 1560) – Museu Medeiros e Almeida
Embora os pintores chineses fossem habilidosos copistas e, normalmente, a gravura original e a representação da mesma em porcelana fossem muito similares, em ocasiões existiam reinterpretações muito livres, nas quais o artesão se focava num pormenor que lhe era de maior interesse. No caso da reprodução da gravura “Peregrinos da Ilha de Citera” no serviço de chã e café da Coleção Medeiros e Almeida, o motivo decorativo central segue muito de perto a gravura de Bernard Picart, porém, são evidentes pequenas alterações, para além da espectável simplificação resultante de uma cópia para um material e técnica diferentes. Estas modificações são devidas, provavelmente, ao contexto chinês em que o serviço foi criado – ver, por exemplo, o formato dos telhados do casario à esquerda, o desenho em espiral das copas das árvores ou os rasgos orientalizantes das três figuras –, mas também à falta de compreensão por parte do pintor da simbologia associada a alguns dos pormenores. Exemplo disso mesmo é a eliminação, ou defeituosa reprodução, das conchas de vieira (conchas de Santiago) patentes na gravura nas capas das três personagens, assim como no chapéu da senhora, que os caracterizam como peregrinos; ou a esquemática representação das esculturas no interior do “relicário” que pende da cintura da figura feminina, que deixam de ser reconhecíveis como Afrodita e Eros, perdendo-se assim a ligação à ilha de Citera. Nas reservas secundárias das peças deste conjunto, apresentam-se vistas que combinam características típicas da paisagem chinesa, com a inspiração dada pela própria paisagem de fundo da gravura de Picart, alusão indireta à ilha de Citera.
Bernard Picart
Nascido em Paris, Bernard Picart (1673-1733) era filho do também gravador Etienne Picart (1631-1721), que trabalhou durante anos em Roma realizando gravuras dos mestres italianos. Ainda em França, aprende o ofício do seu pai e de Sébastian Le Clerc (1637-1714). Após uma primeira etapa em Antuérpia e Amsterdão, Bernard Picart volta a França e, após a morte da sua primeira mulher, regressa definitivamente aos Países Baixos (para onde o seu pai, huguenote, também emigra), por volta de 1711, trabalhando como ilustrador/gravador e vendedor de gravuras, e instituindo, em c. 1718, uma escola para gravadores.
A maioria do trabalho de Bernard Picart consiste em ilustrações para livros, como “Figuras da Bíblia”, “Tábuas das principais histórias do Antigo e do Novo Testamento” ou “O Templo das Musas”, onde ilustra as Metamorfoses de Ovídio. O mais famoso e ambicioso dos seus trabalhos é a coleção “Cérémonies et coutumes religieuses de tous les peuples du monde” (Cerimónias e costumes religiosos de todos os povos do mundo), dez volumes de texto e gravuras, completados entre 1723 e 1743, onde pretende registar a diversidade dos distintos rituais religiosos do mundo.
Após a sua morte, em 1733, a sua viúva, Anna Vincent, guarda a coleção de desenhos, mas vende as gravuras e as respetivas placas de cobre e, em 1734, publica “Impostures innocentes, ou recueil d’estampes d’après divers peintres illustres tels que Raphaël, Le Guide, Carlo Maratta, Le Poussin, Rembrandt, etc., gravées à leur imitation et selon le goût particulier de chacun d’eux, et accompagnées d’un discours sur les préjugés de certains curieux touchant la gravure, par Bernard Picart, dessinateur et graveur, avec son éloge historique et le catalogue de ses ouvrages, Veuve de Bernard Picart, Amsterdam”, livro onde, após um elogio inicial à obra de Picart, junta gravuras realizadas por ele baseadas em famosos pintores e gravuras próprias do autor.
Outros serviços com igual decoração
A gravura de Bernard Picart, “Peregrinos da Ilha de Citera”, foi usada na porcelana de China de exportação, tanto em peças avulsas como para a decoração de serviços completos, nomeadamente serviços, como este, de chá ou café. Embora baseados na mesma gravura, existem diferenças nas adaptações, especialmente em relação aos elementos do fundo (árvores, casario, embarcações) e no tipo de cercaduras e composição geral na qual a cena se enquadra. De modo a ilustrar esta diversidade e, simultaneamente, a popularidade desta temática, destacamos dois exemplos:
Um prato pertencente à coleção dos Museus Estatais de Berlim (Staatliche Museen zu Berlin), com decoração em grisaille e ouro, onde os Peregrinos da Ilha de Citara (com as carnações destacadas em tons de vermelho) são o tema central. Neste exemplar, o covo aparece delimitado por um friso de pontas de seta em dourado e a aba está decorada com o chamado “laub-und-bandelwerk” (folhas e laçaria), motivo típico da porcelana Du Paquier vienense, com cornucópias, enrolamentos vegetalistas, fitas e cartelas [18].
Um prato do acervo do Victoria & Albert Museum, em Londres, onde a cena tirada da gravura de Bernard Picart aparece também ao centro, porém, aqui, em decoração polícroma. O covo também cercado por friso de pontas de seta a ouro e, na aba, decoração dourada de enrolamentos vegetalistas e concheados, de inspiração europeia.
Outras peças com decoração similar, baseadas na mesma gravura, podem ser encontrados noutros museus e coleções privadas, como o prato do Musée Villèle, igual ao exemplar do Victoria & Albert Museum, mas em grisaille (https://www.musee-villele.re/en/search-notice/detail/1990-176-assiet-8ed36); um prato no Amgueddfa Cymru-Museum Wales, onde a cena dos peregrinos, a cor, ocupa a totalidade do prato (https://museum.wales/art/online/?action=show_item&item=4648); ou quatro peças em grisaille no Musée de la Ville de Paris (em depósito no Musée de la Compagnie des Indes-Ville de Lorient), sendo que duas destas peças são pratos (embora com diferente composição), uma taça de chá onde a cena dos “Peregrinos da ilha de Citera” se estende por todo o bojo, e a quarta um bule, de tipologia igual ao da Coleção Medeiros e Almeida (https://www.pop.culture.gouv.fr/search/list?auteur=%5B%22PICART%20Bernard%20%28d%27apr%C3%A8s%2C%20graveur%29%22%5D).
Peças do serviço de chá e café da Coleção Medeiros e Almeida
Embora o tema dos “Peregrinos da ilha de Citera” seja, como já evidenciado, um tema comum na porcelana da China de exportação, importa destacar, em relação ao serviço de chá e café da Coleção Medeiros e Almeida, o elevado número de peças do mesmo conjunto que ainda se conservam juntas (algo pouco frequente), assim como o bom estado de conservação das mesmas (nomeadamente tendo em atenção que estão decoradas em grisaille e ouro) [19] e o elaborado e raro esquema decorativo das peças, que conjuga elementos europeus (como a própria temática ou a tipologia das reservas), com elementos tipicamente chineses (como os padrões que preenchem o fundo) e, ainda, motivos ornamentais característicos da porcelana de exportação, como o friso de pontas de setas.
A datação do serviço de chá e café da Coleção Medeiros e Almeida
A grande maioria da porcelana da China de exportação não apresenta datas nem marcas e, por isso, a sua datação tem de ser realizada atendendo a outros fatores, tais como as formas (por comparação com outras porcelanas da China ou peças europeias, em prata ou cerâmica, cuja datação pode ser mais facilmente apurada); a decoração (brasões, gravuras, molduras e padrões que ajudam a afinar a baliza temporal) ou a tipologia da própria peça ou do conjunto do qual faz parte, sendo que as modas e as necessidades serão diferentes em distintas épocas (e países!).
No caso do presente serviço, o motivo decorativo principal, como já foi referido, é baseado numa gravura europeia, sendo que o uso de gravuras vindas da Europa para a decoração da porcelana é característico do século XVIII. A gravura em questão, claramente identificada e datada de 1708, faz com que a data de fabrico possível mais recuada para estas porcelanas seja a segunda década do século XVIII, não podendo ser anterior à publicação da gravura e tendo em conta que, desde a publicação na Europa da mesma até a sua chegada à China, existe necessariamente um espaço temporal.
O bule deste conjunto é, como dito anteriormente, um modelo oriental muito popular para exportação e, por isso, muito utilizado em Cantão, onde chegavam grandes quantidades desta tipologia, em porcelana branca, para ser posteriormente decorada a pedido. O período áureo da produção cantonesa corresponde às décadas entre 1740 e 1780.
O friso de pontas de setas, habitualmente em dourado e rouge-de-fer, como o presente no prato raso do serviço, é um motivo decorativo típico da porcelana de exportação e usado em Cantão durante as décadas centrais do século XVIII, assim como também o é, segundo algumas fontes, a orquídea (Cymbidium virescens) patente no interior das taças de chá.
Pormenor do friso de pontas de setas (FMA 1560) e pormenor da orquídea (FMA 1581) – Museu Medeiros e Almeida
Atendendo ao exposto, e recorrendo também à comparação com outras peças em porcelana com a mesma decoração (como as acima listadas), parece razoável datar este serviço de chá e café da Coleção de c. 1740-1750, datação que corresponde ao período do imperador Qianlong (1735-1796), da dinastia Qing.
Proveniência
Este serviço foi adquirido por António de Medeiros e Almeida no leilão da Soares & Mendonça que teve lugar a 13 de fevereiro de 1965 no 2º andar do prédio número 26 da Avenida Júlio Dinis, em Lisboa. O lote, número 98, aparece descrito no catálogo como “Serviço de chá e café, de finíssima e rara porcelana da Cª das Índias, decorado com paisagens e figuras europeias, a tinta da China, com reservas policromadas, composto de trinta e seis peças, incluindo pires”, seguido de enumeração das peças e acompanhado por imagem do conjunto.
Nesse leilão, o colecionador compra também um outro serviço de chá e café, com marca atribuível ao ourives português Cirilo José Maz Silva (1826-1870), composto por cinco peças: bule, cafeteria, leiteira, açucareiro e taça de pingos, atualmente também em exposição permanente na Sala das Pratas do Museu Medeiros e Almeida.
Estampa XL do Catálogo de Antiguidades, Mobiliário e Objectos de Arte que serão apresentados para venda por meio de leilão, com início no dia 13 de fevereiro de 1965 no 2º andar do prédio da Avenida Júlio Dinis, 26 (ao campo pequeno) Lisboa. Lisboa: Soares & Mendonça, 1965
Samantha Coleman-Aller
Museu Medeiros e Almeida
[1] Poema patente na gravura “Pelerins de l’Isle de Cithere” realizada em 1708 pelo gravador francês Bernard Picart. Tradução da autora. No original: “Que ces Pelerins son heureux. / Qu’ils font un voyage agreable. / Amour conduit leur pas, Bacchus marche avec eux. / Qu´a Cithere ils auront bon liet et bonne table.“.
[2] Estes padrões aparecem classificados por William Giuseppi Gulland, no primeiro volume do seu livro Chinese Porcelain, como “flowered honey-comb” e “rice diamond-work”. William Giuseppi Gulland, Chinese Porcelain and Four Hundred and Eighy Five Illustrations (London: Chapman & Hall, 1902), 132-134.
[3] A 25 de agosto de 2014, o prato fundo (FMA 1558), na altura exposto na Sala das Pratas do Museu, partiu, provavelmente devido à trepidação fruto das obras que estavam a ser realizadas num prédio próximo do Museu. Este exemplar continua, contudo, inventariado e forma parte do espólio do Museu, embora se encontre permanentemente em reservas.
[4] Introduzidas na Europa durante o século XVII, o chá, o café e o chocolate, tornaram-se bebidas populares, embora caras, que deram lugar a rituais de consumo próprios e à aparição de toda uma série de utensílios específicos.
[5] John Goldsmith Phillips, China-Trade Porcelain. An Account of Its Historical Background, Manufacture and Decoration and a Study of the Helena Woolworth McCann Collection (Cambridge: Harvard University Press, 1956), 55.
[6] Timothy Schroder, British and Continental Gold and Silver in the Ashmolean Museum, Vol. 2 (Oxford: Ashmolean Museum, 2009), 710-713.
[7] Esta teoria, da autoria de Antonia Agnew, é apresentada, embora com algumas reservas, por Timothy Schroder no segundo volume da sua obra sobre ourivesaria europeia no Ashmolean Museum. Timothy Schroder, British and Continental Gold and Silver in the Ashmolean Museum (Oxford: Ashmolean Museum, 2009), 705.
[8] Conhecida no mundo anglo-saxónico como China-Trade, este termo faz referência à porcelana fabricada na China, para exportação, e realizada ao gosto do encomendante.
[9] Tradução da autora. No original: “The Tale of China-Trade porcelain (…) is in part a Chinese story, for the ware was manufactured in China; but it is also European in that the ware was made for European (use)”. John Goldsmith Phillips, China-Trade Porcelain. An Account of Its Historical Background, Manufacture and Decoration and a Study of the Helena Woolworth McCann Collection (Cambridge: Harvard University Press, 1956), XIX.
[10] Este comércio não será exclusivamente de porcelanas, mas também especiarias, chá, lacas, sedas, …
[11] Ver, por exemplo, o gomil (FMA 824), datado de c. 1519-1521, provavelmente uma das primeiras porcelanas da China de exportação a chegar a Europa: https://www.museumedeirosealmeida.pt/pecas/gomil-1519-1521/
[12] Em 1734, a Companhia Holandesa das Índias Orientais (VOC), contrata um artista, Cornelis Pronk (1691-1759) para produzir desenhos específicos para as porcelanas de exportação, mas o mais frequente será o uso de gravuras já existentes e cuja aceitação por parte do público já era conhecida, como no caso da gravura de Bernard Picart, usada no serviço de chá e café aqui apresentado.
[13] Outro serviço em grisaille da Coleção Medeiros e Almeida em: https://www.museumedeirosealmeida.pt/pecas/conjunto-de-3-pratos-natividade-crucificacao-ressureicao-destaque-abril-de-2015/
[14] Esta carta, juntamente com outra de 1712, constituem os primeiros e mais importantes relatos a chegar a Europa sobre o fabrico da porcelana da China.
[15] Hélène Duccini, “Watteau et Marivaux : deux tèmoins d’une mutation du sentiment amoureux au XVIIIe siècle” In Le Temps des médias (https://www.cairn.info/revue-le-temps-des-medias-2012-2-page-12.htm?contenu=article).
[16] Ver : René de La Coste-Messelière, “Sous le signe de la coquille, Compostelle et Cythère.” In Bulletin de la Société Nationale des Antiquaires de France (Paris: Diffusion de Boccard, 1984) 40-42 e Matthias Weiß, “Cytherian China.” In Reading Objects in the Contact Zone (Heidelberg: Heidelberg University Publishing, 2021), 68.
[17] Camaïeu é uma técnica que usa tinta de uma única cor, dando lugar a imagens monocromáticas.
[18] Este e todos os outros websites listados nesta secção foram consultadas a 8 de março de 2023.
[19] Na decoração em grisaille ao esmalte, possivelmente óxido de cobalto, era adicionado muito pouco fundente, tornando-o suscetível de desgaste.
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Weiß, Matthias. “Cytherian China.” In Reading Objects in the Contact Zone, edited by Eva-Maria Troelenberg, Kerstin Schankweiler and Anna Sophia Messner, 66-72. Heidelberg: Heidelberg University Publishing, 2021
Webgrafia:
Péricard-Méa, Denise. “Quand la route de Compostelle devient celle de Cythère”. Institut de Recherche Jacquaire. Acessada a 20 de março de 2023. https://www.institut-irj.fr/Quand-la-route-de-Compostelle-devient-celle-de-Cythere-etape-n-32_a358.html
Duccini Hélène, “Watteau et Marivaux : deux témoins d’une mutation du sentiment amoureux au XVIIIe siècle” In Le Temps des médias. Acessada a 20 de março de 2023
https://www.cairn.info/revue-le-temps-des-medias-2012-2-page-12.htm?contenu=article
Como citar / How to cite: Coleman-Aller, Samantha (2023). Serviço de chá e café “Peregrinos da Ilha de Cítara”. Lisboa: Museu Medeiros e Almeida. https://www.museumedeirosealmeida.pt/pecas/servico-de-cha-e-cafe/
NOTA: A investigação em História da Arte é um trabalho permanentemente em curso. Caso tenha alguma informação ou queira colocar alguma questão a propósito deste texto, agradecemos o contacto para: info@museumedeirosealmeida.pt.