Marca de ourives: AFC – de António Firmo da Costa, registado em 1793 (L.78, M.A.)* Marca do centro de fabrico (contraste municipal): L coroado – de Lisboa, de 1810-22 (L.36 M.A., variante B)* *Classificação segundo os decalques do inventário de marcas e contrastes do engenheiro Fernando Moitinho de Almeida (ver bibliografia).
Serviço de chá e café em prata lisa decorada, composto por bule, cafeteira, leiteira, açucareiro e taça de pingos, da autoria do prateiro lisboeta António Firmo da Costa.
O Serviço:
Na época do rei D. João VI (1767-1826), a contrastar com a movimentação do estilo rocaille, a linguagem do classicismo impõe-se predominando as linhas retas e a depuração das formas e da decoração revelando a influência dos modelos ingleses, muito presentes devido às relações políticas e económicas luso-inglesas. “Os ourives de Lisboa e do Porto revelam nesta época uma notável produção, denotando uma grande vitalidade criativa, que corresponde a um considerável movimento de renovação e criação de novos modelos. Numerosos exemplares deste período, sobretudo da prataria civil (…), exemplificam a sábia assimilação do gosto Adam cuja frieza racionalista é subtilmente atenuada…” (OREY, p.9).
As cinco peças que compõem o serviço são bojudas, de linhas ovais depuradas e apresentam bases circulares em vez de pés. O bule e cafeteira têm uns originais bicos de seção triangular e as pegas em madeira de ébano (uma original outra posterior), o açucareiro e a leiteira apresentam as características pegas alteadas formando dois ângulos retos. Os botões das tampas são esferas achatadas.
A decoração das peças é de inspiração neoclássica, sendo decoradas com frisos gravados de pequenos trifólios ligados por laçadas na base, colo e orla das tampas e com cercaduras de gregas na base e no colo (esta decoração encontra-se presente em muitas das peças de AFC). Em todas as peças foi gravado, posteriormente, no bojo o monograma ‘N’ rodeado por uma coroa de louros em honra do seu novo utilizador.
As peças estão marcadas nas orlas das bases com a marca do ourives – AFC: “Marca de ourives: marca aplicada pelo artista quando termina a peça antes de a mandar “ensaiar”, registada também no senado da Câmara.” (in: site Ourivesaria Portuguesa) No fundo das bases (exceto na cafeteira) surge o contrate do centro de fabrico: a cidade de Lisboa: “…Os antigos contrastes adotaram, para a prata, uma inicial, geralmente coroada, da localidade onde exerciam a sua atividade. Assim, a letra L para Lisboa, (…), sem qualquer índice de toque. (…) as do século XIX apresentavam o contorno ovalado.” (Almeida, p.X). Regista-se ainda a presença de ‘bichas’: “…Burilada: conhecida por “bicha”, consiste numa linha em ziguezague feita com o buril com o intuito de testar a liga de prata. A amostra seria de seguida aquecida e comparada com “amostras padrão.” (in: site ‘Ourivesaria Portuguesa’).
Quanto à tipologia das diferentes peças, destaca-se a chamada ‘taça dos pingos’; esta peça remonta às taças de vários tamanhos e feitios que eram usadas nas mesas para despejar restos de comida de modo a libertar os pratos – prática ainda corrente em vários países. Desde meados do século XVIII que os serviços de chá incluíram uma taça onde se despejavam os restos de chá já frio das chávenas, para as voltar a encher com chá quente ou as folhas de chá usadas que tinham assentado no fundo das chávenas. De início estes elementos eram grandes taças com pé alto, tendo evoluído para um recipiente circular, sem pé e com um bordo saliente (para evitar os espirros) sem asas nem tampa, duas vezes maior que o açucareiro – as chamadas ‘taças do pingo’.
O Chá:
Tomar chá é um hábito registado no Oriente, nomeadamente na China, Coreia e Japão desde uma época remota. Este hábito foi trazido para a Europa, em meados do século XVII, pelos Portugueses, tendo sido largamente adotado na centúria seguinte enraizando-se na cultura europeia e tornando-se sinónimo de civilização – é famoso o papel da rainha de Inglaterra, D. Catarina de Bragança (1638-1705), na introdução do hábito de tomar chá às cinco da tarde na corte inglesa. Associado ao ritual de tomar chá, nasceu todo um cerimonial que criou a necessidade de se criarem objetos específicos; nascem os serviços compostos pelo bule e as demais peças do chamado ‘serviço de chá’; a leiteira, o açucareiro e a taça de pingos. No último quartel de oitocentos, introduziu-se a cafeteira para o café, um novo hábito vindo de África. Preferencialmente de porcelana ou de prata, de três ou de cinco peças os serviços foram acompanhando o gosto vigente; barroco, rococó, neoclássico, arte nova…
O Autor:
Nascido em 1767 em Lisboa, António Firmo da Costa é inscrito como aprendiz do ofício de ourives de prata aos 12 anos (o que implicava já saber ler e escrever), pelo Mestre Francisco Manuel de Paula Castilho. Passados cinco anos foi aceite como oficial e confrade da Irmandade de Nossa Senhora da Assunção. Em 1790 faz exame para mestre ourives da Confraria de Sto. Elói e em 1793, já possuidor de uma loja e um aprendiz, regista o seu punção no Senado da Câmara Municipal de Lisboa. A partir de 1800, o mestre matricula sete aprendizes que o irão acompanhar ao longo da vida.
Sabe-se que AFC possuía três lojas na esquina da rua da Rainha com a rua de S. Julião e uma numerosa clientela de todos os quadrantes da sociedade, que lhe garantiu numerosas encomendas.
Viúvo e sem filhos legítimos, as suas herdeiras serão duas filhas naturais legitimadas, uma delas, casada com um dos seus aprendizes, o futuro mestre Francisco José dos Santos Firmô. Morre em Lisboa aos 56 anos, em 1824.
Quanto à maneira de trabalhar de AFC, pode-se dizer que foi um pioneiro, acompanhando a viragem do gosto que se deu com a passagem do século: “…Progressivamente vai despojando a forma de todos os elementos decorativos acessórios, mantendo-a na sua pureza inicial e gradualmente renovando o desenho, inovando e abrindo novos caminhos formais até chegar a modelos extremamente bem concebidos em termos funcionais, simultaneamente inovadores e originais, por vezes de uma modernidade quase contemporânea dos nossos dias.” (OREY, p.12) Durante os 31 anos de ativa produção, AFC conjuga a sobriedade e o equilíbrio, sobretudo no âmbito de peças do quotidiano civil, explorando a funcionalidade de por exemplo, a chamada ‘prata de mesa’, nomeadamente com a criação de serviços de chá e de café – que teve grande impulso em Portugal a partir de terceiro quartel do século XVIII – e que AFC com a sua capacidade criativa, soube interpretar, adequar e renovar a cada encomenda. O exemplar em estudo é disso bom exemplo.
Historial:
O imperador francês Napoleão Bonaparte, após a derrota na batalha de Waterloo (18 de Junho de 1815) foi destituído e enviado para o exílio na ilha de Santa Helena onde veio a morrer em 1821. A ilha, situada no Atlântico Sul – posse dos Portugueses até 1645 -, tinha sido cedida à Companhia das Índias Orientais a quem os ingleses pagaram renda durante o cativeiro (em 1834 tornar-se-ia uma colónia britânica).
O serviço de chá e de café, produzido em Lisboa, encontrando-se no Funchal por razões desconhecidas, embarcou no navio H.M.S. Northumberland, tendo nessa altura sido gravado com o monograma de Napoleão.
O Northumberland abasteceu-se na ilha da Madeira, entre 22 e 25 de agosto de 1815 aquando do transporte do imperador deposto para o exílio: “…Nessa mesma noite de 22 de agosto, o navio inglês Northumberland, comandado pelo Contra-Almirante Sir George Cockburn, passa à vista de Porto Santo e lança ferro ao largo do Funchal. Ninguém da comitiva é autorizado a desembarcar.” (CRUZ, p.7) “…no dia 24 embarcamos alguns bois e outras provisões como laranjas verdes , maus pêssegos, pêras sem gosto, mas figos e uvas excelentes. Encomendaram livros, equipamento doméstico e material de pintura. E puseram cartas no correio…” (CRUZ, p.16). São ainda famosos os livros enviados para Santa Helena e as garrafas de vinho da Madeira. “…diante do Funchal, elevou-se um muito violento siroco que soprou sem descontinuidade.
Os habitantes da ilha, muito supersticiosos e temendo pelas colheitas, não deixaram de atribuir este mal à presença de Bonaparte nas suas paragens…” (CRUZ, p.15) “Foi esta a última vez que Napoleão contemplou Portugal e a última que contemplou a Europa.” (CRUZ, p.15).
Durante os seis anos de cativeiro, entre 1815 e 1821, o serviço de chá e café de António Firmo da Costa permaneceu ao serviço do ex imperador na sua residência em Santa Helena; Longwood House.
Proveniência:
Pertenceu a Napoleão Bonaparte entre 1815 e 1821; Comprado pelo avô do Coronel J. H. Gideon, em Londres, num dos leilões do espólio de Longwood que decorreram anos após a morte de Napoleão; Colecção do Coronel J. H. Gideon (1862-1958), dos XX Lancashire Fusiliers, Inglaterra; Comprado em 15 de Dezembro de 1931 para a coleção de Lady Elisabeth Bagnall Vernon (?-1947), 109, Lancaster Gate, Londres; Herdado por Humphrey Bagnall Vernon M.C. (filho) (1895-1979), The Cottage, Little Tew, Oxfordshire, até Julho de 1969; Comprado por Medeiros e Almeida em leilão da Sotheby’s, Londres, de 9 de Outubro de 1969, lote 214, por £ 1.450, por intermédio do antiquário António Costa (Rua do Alecrim 76-78, Lisboa). A propósito desta compra, a revista inglesa Country Life, de dezembro de 1969, dando notícia do leilão, escreve que o serviço foi comprado por: “…I imagine, a descendant of the man who made it, António Costa…”.
Declarações de J.H. Gideon e de Humphrey Vernon
Nota: A Casa-Museu possui ainda um par de castiçais baixos do mesmo autor.
Maria de Lima Mayer
Casa-Museu Medeiros e Almeida
Exposições:
‘D. João VI e o seu Tempo’, Palácio Nacional da Ajuda, Galeria de Pintura do Rei D. Luís, Lisboa, Maio – Julho 1999 ‘António Firmo da Costa – Um Ourives de Lisboa através da sua Obra’, Casa-Museu Dr. Anastácio Gonçalves, Lisboa, Janeiro – Maio de 2000
‘Tesouros da Intimidade Real, Objetos do uso pessoal de Príncipes Europeus’, Fundação Medeiros e Almeida, Lisboa, 20 de Maio de 2005 a 31 de Janeiro de 2006
‘O Porto e as Invasões Francesas’, Galeria do Palácio, Biblioteca Municipal Almeida Garrett, Porto, 28 de Março a 4 Setembro de 2009
Bibliografia:
ALMEIDA, Fernando Moitinho de; Marcas de Pratas Portuguesas e Brasileiras (século XV a 1887), Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1995
OREY, Leonor d’ (coord.); António Firmo da Costa – Um Ourives de Lisboa, através da sua Obra, Lisboa: Instituto Português de Museus, 2000
CRUZ, Duarte Ivo; Napoleão na Madeira – Itinerário português do exílio de Napoleão Bonaparte, Lisboa: Sociedade de Geografia de Lisboa, 2006
MAGALHÃES, Joaquim Romero (coord.), D. João VI e o seu Tempo, Lisboa: Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1999
SANTOS, Reynaldo; QUILHÓ, Irene; Ourivesaria Portuguesa nas Coleções Particulares, Lisboa: s/ed., 1794
VIDAL, Manuel Gonçalves; ALMEIDA, Fernando Moitinho; Marcas de Contrastes e Ourives Portugueses, Volume I, Séc. XV a 1887, Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1974
VILAÇA, Teresa; Tesouros da Intimidade Real, Objetos do uso pessoal de Príncipes Europeus, Lisboa: Fundação Medeiros e Almeida, 2005
Sotheby & Co., Catalogue of Important English and Foreign Silver and Plate, Tuesday, 9th October 1969 Revista Country Life, dezembro 1969
Consultas internet:
Ourivesaria Portuguesa – http://www.ourivesariaportuguesa.info/index.html, consultado em 19/7/2013
António Firmo da Costa (1767-1823)
1815
Portugal, Lisboa
Prata gravada, incisa, cinzelada e ébano
Bule - 18,8cm /1020gr., cafeteira - 29cm/1193gr., açucareiro - 16,7cm/572gr., leiteira - 16,3cm/425gr., taça de pingos - 8cm/418gr. Peso total: 3628 gramas.