A coleção de ourivesaria do Museu possui um raro conjunto de refeição/piquenique em vermeil (prata dourada), que pertenceu ao príncipe Luís de Orleães (1814-1896), duque de Nemours, filho do rei dos Franceses Louis-Philippe (1773-1850), e da princesa Maria Amélia Bourbon Duas Sicílias (1782-1866).
As peças do conjunto são decoradas com o monograma real “LLO”, encimado por coroa ducal dos Filhos de França.
A peça encontra-se exposta na Sala das Pratas.
Conjuntos de viagem / nécessaires de voyage:
Já desde o século XVII que os jovens das famílias nobres realizavam o chamado Grand Tour, a grande viagem pela Europa que visava o contacto destes com o legado cultural da Antiguidade Clássica e do Renascimento, assim como o convívio com a aristocracia europeia e a possibilidade de aperfeiçoar outras línguas e familiarizar-se com novas formas de arte e música. Durante os séculos XVIII e XIX, viajar transformou-se numa realidade cotidiana entre as classes mais endinheiradas, o que não só respondia a questões de ordem prática como também era considerado um privilégio e um símbolo de poder. De modo a não renunciar a algumas das comodidades a que estavam habituados no seu dia-a-dia, os viajantes mais abastados faziam-se acompanhar nas suas deslocações de sofisticadas malas nas quais transportavam os seus pertences, surgindo assim os chamados “nécessaires de voyage” (travelling cases).
A origem dos conjuntos de viagem em França remonta ao século XIV, embora estes primeiros exemplos sejam modelos muito básicos e utilitários, normalmente limitados a objetos relacionados com o asseio, que com o passar do tempo se enriquecem e se transformam em verdadeiros acessórios de luxo.
Os conjuntos de viagem são fundamentalmente estojos mais ou menos requintados, adaptados para conter e transportar em segurança os mais variados objetos: utensílios e produtos para a higiene pessoal, joias, instrumentos de costura ou escrita, loiças, talheres, frascos, candelabros e até material médico ou científico. Para a manufatura destes extraordinários e valiosos conjuntos era necessária a colaboração de um diversificado grupo de artesãos, como ourives, fabricantes de vidro e de porcelana, cuteleiros, marceneiros, etc. Os interiores das caixas ou estojos eram perfeitamente desenhados e equipados com compartimentos para encaixar cada objeto a conter, e as caixas eram habitualmente equipadas com fechaduras e, por vezes, com compartimentos secretos para esconder os objetos mais valiosos ou queridos.
Os nécessaires de voyage eram muitas vezes personalizados, tanto no seu conteúdo como na decoração (presença de monogramas, brasões, etc.) e, embora normalmente desenhados por encomenda, existiam também conjuntos fabricados de forma mais genérica sem um destinatário preciso. Não era raro que membros de uma família real, assim como outras figuras proeminentes, tivessem o seu próprio conjunto (ou conjuntos) de viagem, encontrando-se ainda exemplares em museus e coleções particulares.
Conjuntos de piquenique:
Pensa-se que a palavra piquenique venha do francês “pique-nique” que surge no século XVI para designar uma refeição convivial. A prática, cada vez mais ligada ao significado atual associado a uma escapada campestre e festiva, torna-se progressivamente popular entre a nobreza e a aristocracia um pouco por toda a Europa, sendo que no século XVIII começa a ser usado o termo “picnic” em Inglaterra. Este costume estender-se-á também por outras camadas da sociedade.
No século XVIII os piqueniques eram verdadeiros acontecimentos de gala entre as classes mais altas, sendo as refeições servidas com o maior requinte. Os fabricantes de conjuntos de viagem, acompanhando esta moda, desenham nécessaires próprios para transportar todos os utensílios indispensáveis a este tipo de banquetes: pratos, terrinas, molheiras, saleiros, frascos para especiarias, talheres, garrafas, copos, tachos, queimadores, etc. Estas peças podiam ser realizadas em diversos materiais, como prata ou prata dourada, vidro ou porcelana.
Os conjuntos variavam também muito em tamanho e composição, desde pequenos estojos para uso individual a grandes caixas para quatro, seis ou oito pessoas. Com o tempo, começaram a aparecer variantes e complementos destes conjuntos, tais como conjuntos de chá (com chaleira, chávenas, pires, açucareiro) ou conjuntos para cocktail (compostos por garrafas, copos, copos de mistura e inclusive balde e pinças para gelo).
No século XIX, a cultura do Romantismo convidava à fruição da natureza, aos passeios no campo e às refeições ao ar livre. É neste contexto que se continuam a produzir conjuntos adequados aos piqueniques, aparecendo novos materiais para as caixas de transporte, como o vime.
Com o passar do tempo, a qualidade e requinte dos serviços de piquenique elaborados desaparecem gradualmente, dando lugar a exemplares mais baratos, de produção em massa, com recurso a materiais como o plástico, como é o caso dos coloridos conjuntos tão em voga nos anos 50 e 60 do século XX.
Nota: O Museu da Fundação Ricardo do Espírito Santo Silva possui um importante Estojo de Viagem de produção portuguesa, de início do século XVIII;
O Museu do Louvre em Paris conserva o serviço de viagem da rainha Maria Antonieta, executado em Paris em 1788;
Um exemplo de conjunto de viagem de chá francês do terceiro quartel do século XVIII – The Garrick Service – pode ser visto no Museu Victoria and Albert (V&A) em Londres.
O conjunto de viagem da coleção Medeiros e Almeida:
O conjunto de refeição/piquenique de viagem pertencente à coleção é de fabrico francês do segundo quartel do século XIX, destinando-se a quatro talheres completos. Conservam-se 30 das peças originais: um tacho com tampa, uma terrina com tampa, quatro pratos de sobremesa, um prato raso, três colheres de sobremesa, três colheres de sopa, três garfos, quatro facas, dois copos, um suporte de ovos quentes, um saleiro, duas caixas com tampa, um açucareiro, uma pinça de açúcar, um jarro e uma bacia.
As peças são em vermeil liso com rebordo canelado simples e apresentam gravado o monograma “LLO” encimado por coroa ducal de cinco pontas nos bojos e tampas. A terrina é a peça de composição mais elaborada, tendo os quatro pés e as duas asas trabalhados em forma de folhagem e troncos entrelaçados e a pega da tampa em forma de flor com o botão fechado e as pétalas abertas. Os talheres e a pinça de açúcar têm o cabo ornado com nós, sendo as pontas da pinça em forma de garras de leão. O cabo e a pega da tampa do tacho são em marfim liso.
As peças encaixam umas nas outras para serem guardadas numa caixa-baú quadrangular em madeira de mogno, com compartimentos interiores em veludo roxo e marroquim para organizar todos os componentes do serviço. A tampa da caixa apresenta também o mesmo monograma “LLO” coroado, embutido em madeira mais clara.
Inscrito na placa metálica interior da fechadura, a assinatura “Aucoc Aine Fournisseur du Roi a Paris”, hoje-em-dia apenas parcialmente legível. Todo o conjunto pode ser acomodado para viagem numa mala de transporte em cabedal, com fecho de correias e pegas laterais.
Na maioria das peças do serviço de mesa aparece incisa a assinatura “AUCOC/AINÉ”, assim como a marca de autor – galo, CA e estrela em perímetro losango vertical – correspondente a Jean-Baptiste-Casimir Aucoc, registada em 1839 e cancelada em 1856. Nos talheres existe a marca de um outro fabricante – PQ e remo em perímetro losango horizontal – pertencente a Pierre-François Queille (filho), ativo entre 1834 e 1846. Nas lâminas de duas facas, em muito mau estado, pode ler-se: “AUCOC Bvté DU ROI”, enquanto nas outras duas, em muito melhores condições, surge uma marca por identificar. Esta multiplicidade de marcas não é de todo inusual nos objetos em prata, já que cada parte destes era executada separadamente, o que é especialmente evidente no caso das facas, com artífices especializados a trabalhar nas lâminas. Em todas as peças note-se a presença da cabeça de Minerva 1 em perímetro octogonal; marca de garantia em França entre 1838 e 1919.
Os autores:
Jean-Baptiste-Casimir Aucoc foi um dos mais importantes e reconhecidos fabricantes de conjuntos de viagem em França no segundo quartel do século XIX.
Em 1821 Aucoc começa o seu negócio como ourives na rua Saint-Honoré em Paris, especializando-se na produção de nécessaires de voyage. Rapidamente é apontado fornecedor do rei e muda a sua oficina para a rua de la Paix. Em 1854, após vários anos de trabalho conjunto, Jean-Baptiste deixa o negócio nas mãos do seu filho Louis Aucoc (também conhecido como Louis Ainé), que incorpora a joalharia na firma. A Casa Aucoc continuará na família até 1932.
Pierre-François Queillé (ativo entre 1834 e 1846) foi um fabricante de talheres parisiense. A sua família esteve no negócio da manufatura e venda de talheres e peças de servir desde 1808 até a década de 30 do século XX. A marca familiar registada por Pierre-François Queillé (pai) – as iniciais PQ separadas por um remo e inscritas num losango horizontal – mantém-se a mesma, com apenas pequenas variantes ao longo do tempo.
As suas peças eram comercializadas por eles, mas também por mediação de outros ourives e grandes firmas com as quais colaboraram, como la Maison Odiot, Froment Maurice ou, como no caso do conjunto que nos ocupa, Aucoc Ainé.
Proveniência:
Embora sem qualquer prova documental que o corrobore, o monograma “LLO” coroado leva-nos a considerar que este estojo terá sido uma encomenda de (ou para) Louis d’Orléans, Duque de Nemours. Louis-Charles-Philippe-Raphael d’Orléans (1814-1896) foi o segundo filho varão do Rei Louis-Philippe I de França e de Maria Amália de Nápoles e Duas Sicílias, pelo que a coroa de Filho da França, encimando o monograma que combina as iniciais do seu nome, é perfeitamente adequada, já que é o título honorífico que possuíam os filhos legítimos dos Reis e Delfins de França.
Quanto ao percurso do conjunto, Louis d’Orléans era bisavô de D. Isabel de Orléans e Bragança (1911-2003), pelo que é plausível que o conjunto de viagem pudesse ter passado para a sua posse. D. Isabel era casada com Henri de Orléans, Conde de Paris (1908-1999), que viviam na Quinta do Anjinho, em Sintra, sendo provável que a peça pudesse ter acabado no mercado de arte na altura em que este vende em leilão numerosos objetos e obras de arte da família para apoiar a sua causa política.
Proveniência:
António de Medeiros e Almeida adquiriu este conjunto de viagem à Casa Liquidadora Leiria & Nascimento, Lda. – antigo Bazar Católico – Rua da Emenda, 19, em Lisboa, tal como atesta a fatura de 23 de Fevereiro de 1949 conservada nos arquivos da coleção.
Apesar de a fatura existente nos arquivos do Museu não ter qualquer indicação a esse respeito, trata-se provavelmente do leilão dos bens de Henri d’Orléans (1908-1999), Conde de Paris, do espólio da Quinta do Anjinho em Sintra, efetuado nessa data.
Quando, em 1972, António de Medeiros e Almeida cria a Fundação com o seu nome, este serviço de viagem passa a fazer parte do seu acervo, integrando as coleções de ourivesaria.
Samantha Coleman-Aller
Casa-Museu Medeiros e Almeida
NOTA: A investigação em História da Arte é um processo permanentemente em curso. Caso tenha alguma informação ou queira colocar alguma questão a propósito deste texto, por favor contacte-nos através do correio eletrónico: info@museumedeirosealmeida.pt
Bibliografia:
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VILAÇA, Teresa (coord.), Tesouros da Intimidade Real. Objetos do uso pessoal de Príncipes Europeus na Colecção Medeiros e Almeida, Lisboa: Fundação Medeiros e Almeida, 2005
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GILLIS, James; Travel with Style, 2013
https://www.rauantiques.com/blog/travel-with-style/
LUCIAN, Daniel; Antique Box Guide. A guide to the history, design and manufacture of antique jewellery boxes and dressing cases
WRAIGHT, Tony; The Golden Age of Picnic Sets
Jean-Baptiste-Casimire Aucoc (ativo 1839-1856)
1839-1846
Paris, França
Mala de viagem: couro e metal Caixa/estojo: Madeira de mogno, bronze, veludo e pele Serviço de mesa/piquenique: vermeil (bronze dourado)
Alt. 23cm X Comp. 54,5cm X Larg. 31cm [medidas do conjunto completo arrumado dentro da mala de viagem]