Tijela de arroz imperial (par)
Jingedzhen, província de Jiangxi, China
Dinastia Qing, reinado Yongzheng (1723-1735)
Porcelana
A.: 7cm. X Diâm.: 14cm.
Par de tijelas de arroz, de porcelana muito fina, com interior totalmente coberto a esmalte branco e exterior ou bojo inteiramente revestido a esmalte amarelo, decoradas com esmalte verde representando dois ondulantes dragões escamados, um com a cabeça para a frente, outro com a cabeça virada para trás, de olhos salientes, bigodes e quatro patas com cinco garras, perseguindo uma “pérola preciosa”, apresentada envolta em chamas (pérola flamejante), entre um fundo semeado de nuvens e chamas estilizadas.
O bordo superior, ligeiramente virado para o exterior é ornado por largo friso formado por nuvens estilizadas encadeadas e rematado inferiormente por filete simples. As tijelas assentam sobre pé alto liso.
A pasta é de grande qualidade sendo a moldagem muito fina tornando a porcelana translúcida; levando as peças perto de uma fonte luminosa verifica-se a excecionalidade deste par.
A decoração é delineada com leves incisos na pasta e o desenho realçado por algumas linhas de contorno, não contínuas, a verde mais escuro, que ajudam a dar profundidade e realismo ao motivo como é o caso das escamas do corpo do dragão ou do focinho. Se por um lado, o esmalte amarelo (também chamado “imperial” ou “limão”) é uniforme, o esmalte verde-escuro, chamado “verde folha” neste caso, é utilizado em diferentes tonalidades – pela junção do novíssimo esmalte branco – criando claros e escuros, que emprestam profundidade e movimento ao desenho.
Tanto o esmalte branco como as noções de perspetiva e de claro-escuro são novidades vindas do Ocidente, introduzidas pelos ensinamentos dos Jesuítas durante o reinado do curioso imperador Kangxi, que foram integradas tanto na produção de porcelana dedicada ao mercado de exportação, como na porcelana de produção interna, nomeadamente imperial. Apesar do imperador Yongzheng não ser adepto dos missionários estrangeiros nem das novidades como era o seu pai, estas técnicas continuaram a ser praticadas nos fornos de Jingedzhen durante o seu reinado, tendo a imitação de formas antigas – as preferidas do imperador – sido aperfeiçoada.
Na base as taças apresentam a marca do reinado Yongzheng, o chamado nianhao, inscrito dentro de um duplo círculo, com os seis caracteres do reinado escritos em escrita moderna (kaishu), pintados a azul-cobalto sob o vidrado.
As taças eram geralmente feitas aos pares apresentando a decoração em espelho como é o caso. A tipologia é típica chinesa, sendo utilizada para se comer arroz. O par tem as respetivas peanhas de madeira huali.
A simbologia
A análise de uma peça chinesa passa, como todas as outras, pela análise dos elementos constitutivos, da época de produção, à tipologia e sua função, mas também forçosamente pelo simbolismo associado à sua decoração, já que cada cena ou elemento presente, seja ele uma flor, um animal ou um objeto tem um significado, seja pelo seu aspeto, pelos outros elementos a que se encontra associado ou mesmo pela fonética da palavra. É nessa perspetiva que analisamos o par de tijelas do acervo da Casa-Museu, atribuindo-lhe o seu significado e importância dentro da época de produção que lhes deu origem.
O dragão:
De acordo com a mitologia chinesa, o Imperador Amarelo, Huangdi (2697 a.C.-2597 a.C.), considerado o pai da nação, ascendeu ao céu e imortalizou-se em forma de dragão, pelo que os chineses se consideram “descendentes do dragão”. Por esta razão, o dragão – long – é o governante dos céus, uma autoridade cósmica que representa o imperador, o filho do céu que governa “tudo sob o céu”, o símbolo da energia masculina yang, simbolizando o imperador (a fénix é da energia feminina – yin e representa a imperatriz) e um dos Doze Símbolos da Soberania pelo que é símbolo de poder.
Entre muitos outros significados, ele é o 5º animal do zodíaco chinês (utilizado para o calendário), e o grande símbolo da natureza, o dragão Azul – Qinglong –, é um dos Quatro Símbolos (ou quatro criaturas mitológicas) que representam os pontos cardeais, o Este, o deus dragão – Shenlong – controla o tempo (chuva, sol, trovoadas), o dragão celestial – Tianlong – guarda os palácios celestiais. Ele é também responsável pela origem de todos os animais; um compêndio de finais do século II a.C., (Huainanzi) descreve várias espécies, das quais evoluíram os animais, pássaros, peixes e moluscos: o dragão primordial – Xianlong -, o dragão pequeno – Yinglong -, o dragão aquático – Jiaolong-, o dragão voador – Feilong, etc.…
Ao contrário do folclore europeu, na China o dragão é pois considerado um animal benevolente e com poderes auspiciosos que desde os tempos imperiais representa o poder e a autoridade do imperador. Desde a dinastia Tang as vestes do imperador ostentavam um dragão de cinco garras, o trono do imperador chama-se o Trono do Dragão, os túmulos imperiais são ornados com dragões e a escadaria da Cidade Proibida (dinastia Ming) também.
Na arte o dragão é representado desde o Neolítico; a sua representação evoluiu de estilizações de criaturas tipo cobras, crocodilos e peixes para uma criatura compósita sendo uma combinação de vários animais – aos quais deu origem – incluindo cabeça de camelo, cornos de veado, orelhas de vaca, olhos de coelho, garras de águia e escamas de carpa num ondulante corpo de serpente, geralmente com quatro patas e cauda pontiaguda.
Na temática em estudo é representado o dragão amarelo – Huanglong – que é um dragão sem cornos, que geralmente simboliza o imperador. Distinguem-se três tipos de Huanglong; os de cinco garras que só podiam ser representados em peças reservadas somente ao imperador indicando o seu poder e dignidade, os com quatro garras (mang/feiyu) para peças destinadas à nobreza imperial e oficiais de alta patente e as peças para uso de oficiais de baixa patente e para o povo exibiam dragões com três garras (muito populares na dinastia Ming). Esta regra verificou-se desde a dinastia Yuan (1279-1368) de origem mogol. Em 1458 (imperador Ming, Tianshun), o uso impróprio do número de garras foi considerado traição e punido com a execução do todo o clã do ofensor.
A pérola:
A pérola, também chamada pérola preciosa, flamejante ou da sabedoria (chin), representada envolta em chamas indicando luminescência, é um dos Oito Objetos Preciosos (babao); símbolos auspiciosos por excelência do panteão iconográfico chinês, sendo que a pérola está associada à sabedoria, verdade, boa sorte, riqueza, sensatez e prosperidade. Tanto para o Budismo como para o Taoismo (religiões praticadas na China) a pérola é um símbolo de sabedoria e esclarecimento;
As chamas:
As chamas (huo) ou raios estilizados, que rodeiam os dragões representam um dos cinco elementos, o fogo, aludindo, enquanto um dos Doze Símbolos da Soberania ao brilho intelectual do imperador;
As nuvens:
As nuvens (yun), aqui representadas estilizadas, que acompanham as chamas e que formam o friso superior, são símbolos auspiciosos pois carregam a chuva que está associada à abundância. A palavra chinesa “yun” soa como as palavras “fortuna” ou “sorte” pelo que os termos ficaram interligados;
A cor amarela:
O amarelo é considerado a cor imperial desde tempos remotos na China já que a nação teve o seu berço junto ao planalto e ao rio Amarelo, descendendo ainda do lendário pai da nação Huangdi, o Imperador Amarelo, assim chamado por esta ser a cor da terra (dì). Desde a dinastia Han que se associa o amarelo ao elemento terra, simbolizando o centro do universo e logo o poder supremo. Em termos religiosos, a figura de Buda também está associada ao amarelo (ouro), sendo que os seus monges trajam dessa cor.
Tal como descrito nas “Regras ilustradas para a parafernália do cerimonial do Palácio da Dinastia Qing” (Huangchao Liqi Tushi), entre outras utilizações para esta cor, conhecida igualmente como amarelo terra ou amarelo limão, o imperador vestia-se de amarelo para mostrar a sua vinculação ao poder e ao divino; a sua carruagem era amarela, as telhas da cidade Proibida eram vidradas a amarelo. Os comuns não eram sequer autorizados a usar amarelo.
A temática:
O motivo dos dragões a perseguirem a pérola da sabedoria apareceu nas artes decorativas chinesas depois da dinastia Song (960-1279), como resultado da introdução do Budismo na China, fazendo o paralelo com a pedra cintamani desta religião; a poderosa relíquia, pedra ou joia com atribuições mágicas, que concede desejos, por vezes representada na arte budista como uma pérola luminosa.
Neste caso os dragões perseguem a pérola pois a sua obrigação, enquanto líderes de um povo, é a de perseguirem a sabedoria durante todo o seu reinado.
O tema do dragão de cinco garras a perseguir a pérola da sabedoria só podia ser utilizado em peças (vestuário ou objetos) destinados ao uso do Imperador, da Imperatriz ou da Imperatriz-viúva e das concubinas das primeiras quatro importâncias (fei).
Os pares:
A questão dos pares também encerra em si grande simbolismo já que estes traduzem a ideia filosófica, tão cara à civilização chinesa, do princípio gerador de todas as coisas do universo, a partir da dualidade, do equilíbrio das forças opostas, o yin e o yang, a escuridão e a claridade, ou seja das energias negativa e positiva – opostas mas complementares – que compõem o mundo. Daí que na arte chinesa as peças surjam muitas vezes aos pares e estes sejam muito valorizados quando se encontram juntos.
Tal como referido, esta temática decorativa, bem como o modelo, foi utilizada desde a dinastia Ming, adaptando-se à estética dos vários reinados, produzindo exemplares de diferentes coloridos, sempre grandemente apreciados. Para além de alguns pares que surgem ocasionalmente à venda no mercado (sempre muito disputados), o mais comum é encontrarem-se exemplares únicos desta tipologia.
Em Junho de 2011, num leilão da Christie’s de Hong Kong, uma tijela estava avaliada em 300.000/400.000 dólares de Hong Kong e foi vendida pela quantia exorbitante de 1.700.000 HKD devido à sua excecional qualidade: https://www.christies.com/lotfinder/lot/a-fine-green-and-yellow-enamelled-dragon-bowl-5448164-details.aspx?from=salesummery&intobjectid=5448164&sid=fd0e078a-96a1-4d68-a8a6-ee9778cfc620
As marcas:
As marcas indicativas de reinado ou marcas dinásticas são geralmente pintadas na base das peças (a Casa-Museu possuiu uma jarra wanli (1573-1620), com dragões de cinco garras a perseguirem a pérola da sabedoria, com o nianhao marcado no bordo superior), em escrita moderna (kaishu), em azul sob o vidrado, inscrita em duplo círculo. Existem peças do período Qianlong com marcas de reinado em forma de selo (sigilar – com escrita zhuanshu) inscritas num quadrado e escritas a vermelho sobre o vidrado. A qualidade da caligrafia corresponde à qualidade da porcelana em questão.
Algumas das primeiras porcelanas Ming feitas de encomenda para o Ocidente apresentam marcas dinásticas, como é o caso de alguns exemplares da Casa-Museu como o Gomil de “D. Manuel I” e da Taça “Avé Maria”, mas o grosso das chamadas “porcelanas de exportação” não apresentam nianhao, por não se considerar digno enviar para o estrangeiro peças marcadas com o nome do imperador. Assim, as peças marcadas indicam, à partida (excluindo falsificações) que a peça se destinava ao mercado interno, nomeadamente ao entorno imperial.
As marcas de reinado são geralmente formadas por seis caracteres dispostos em duas colunas, sendo lidos da direita para a esquerda e de cima para baixo. O primeiro caractere significa “Da” (= grande), o segundo designa a dinastia “Ming” ou “Qing”, os terceiro e quarto indicam o nome do respetivo reinado – Wanli, Kangxi, Qianlong, etc. –, o quinto lê-se “Nian” (= período) e o sexto “Chih” (= feito). Por vezes omitem-se o primeiro e o segundo caracteres pois ao indicar o reinado, a dinastia está implícita. Durante o período Qing, o caractere Chih indica o “feito” para as peças imperiais, reservando-se outro caractere, o Tso para as peças de uso comum.
Assim, no caso das marcas em análise, de seis caracteres, lê-se: “Da Qing Yongzheng Nian Chih” (Feito na grande dinastia Qing no período Yongzheng). Pelo último caractere verificamos que o destino da peça é o entorno imperial.
De acordo com a simbologia estamos pois na presença de um excecional par de tijelas de arroz de encomenda imperial o que é corroborado tanto pela iconografia como pelas marcas na base. Para além da qualidade da porcelana branca, da sua fina modelagem e da presença do esmalte amarelo imperial, é de notar que o par se mantém junto e em perfeitas condições, não se tendo dispersado após tantos anos, facto que o mercado muito valoriza.
O imperador Yongzheng (1723-1735)
O terceiro monarca Manchu, cujo nome de clã era Aisin Gioro e nome pessoal In Jen (Yin Zhen em chinês) era o 4º dos 35 filhos do imperador Kangxi (1662-1722). Subiu ao trono apenas aos 45 anos e reinou 13 mas o seu pequeno reinado foi eficiente e próspero, tendo ficado marcado pela erradicação da corrupção (com pulso firme) e a reforma da estrutura financeira do país. O pulso firme e crueldade no afastamento de possíveis adversários atribuíram-lhe histórias que se tornaram lendárias.
No que respeita à religião e cultura, o imperador Yongzheng foi um fiel seguidor das tradições ancestrais chinesas. A sua forte personalidade, gosto assertivo e sensibilidade refinada levaram ao seu envolvimento nas artes resultando no aumento da exigência e da qualidade no geral, ficando o seu reinado conhecido por um gosto pela estética do passado, nomeadamente pela dinastia Song (960-1279).
No caso da porcelana, mesmo antes de subir ao trono já revelava grande gosto pela porcelana, ao encomendar trabalhos nos fornos imperiais de Jingedzhen, enviando exemplares antigos de Pequim para serem copiados. Sendo ele próprio um oleiro amador, criou uma relação próxima com o supervisor dos fornos Tang Ying (1682-1756), o responsável durante mais de 20 anos (1728-c. 1755) pelas grandes inovações técnicas introduzidas na produção de porcelana da China – muitas advindas de influências ocidentais conforme referido – e pela qualidade e elegância sem rival, atingidas na dinastia Qing, nomeadamente neste reinado que se carateriza pelas linhas depuradas e decoração sóbria, muito bem pintada.
Um dos responsáveis diretos por esta qualidade foi também o intendente Nien Hsi (1726-36) a quem se atribuem várias peças imperiais. Nien Hsi escreveu um livro sobre a noção de perspetiva europeia, declarando-se aluno do jesuíta e pintor da corte Giuseppe Castiglione (1688-1766) que também decorou porcelana. Este elaborou ainda uma lista de 57 peças que eram produzidas à época em Jingedzhen, na qual figuravam várias tipologias do período Song que foram replicadas, mostrando a preferência do imperador pelas peças clássicas.
Apesar do conservadorismo imperial, a demanda do mercado estrangeiro continuava a crescer tendo a produção para este mercado acompanhado os níveis de qualidade da produção feita para o mercado interno, sendo uma porcelana que se carateriza pelo seu refinamento e alusão a um gosto mais depurado, mais chinês (Han) e menos “Manchu”; um gosto mais plural e carregado que a dinastia Qing (Manchu) introduziu e que muitas vezes o Ocidente “mal” interpreta (falamos do caso da porcelana da China) como sendo o gosto tradicional chinês.
Proveniência:
De acordo com o antiquário, o par de taças pertenceu à coleção de Demetrios Sophocles Constantinidi (c. 1860-?), um colecionador grego que residia em Londres, naturalizado inglês em 1890. Em 1951 foi publicado por Soame Jenyns como tendo pertencido a esta coleção mas já não o sendo à época (ver bibliografia).
O par foi adquirido a Peter Sparks, do antiquário John Sparks Ltd., (128, Mount Street, Londres), a 14 de Dezembro de 1953, por £110, uma quantia considerável para a época. Peter Sparks (1894-1970), que se juntou à firma de seu pai em 1910, foi um dos mais reconhecidos negociantes de arte chinesa de Inglaterra, tendo vendido a Medeiros e Almeida grande parte da coleção de porcelana da China.
Maria de Lima Mayer
Casa-Museu Medeiros e Almeida
Bibliografia
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LEIDY, Denise Patry; How to read Chinese Ceramics. The MET – New York: Yale University Press, New Haven and London, 2015
MÂNTUA, Ana Anjos (Coord. ed.); Normas de Inventário, Cerâmica – Artes Plásticas e Artes Decorativas. Lisboa: Instituto dos Museus e da Conservação, 2007
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Webgrafia
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DILLON, Edward; Porcelain. London: Methuen and Co., 1904 (Project Gutenberg – Release Date: July 15, 2017 [EBook #55118])
Desconhecido
Dinastia Qing, reinado Yongzheng (1723-1735)
Jingedzhen, província de Jiangxi, China
Porcelana
A.: 7cm. X Diâm.: 14cm.