DESTAQUE DEZEMBRO 2023
Um faqueiro inglês de prata, modelo “King”
DESTAQUE DEZEMBRO 2023
Um faqueiro inglês de prata, modelo “King”
Colheres, facas e garfos: hábitos à mesa
Colheres, facas e garfos têm origens muito diversas e, embora hoje em dia façam parte da nossa vida quotidiana, até finais do século XVII eram as mãos os instrumentos mais usados à mesa, daí a importância durante muito tempo dos jarros e bacias para lavar os dedos e das enormes toalhas de mesa [1]. A partir dessa altura, começam a generalizar-se os faqueiros, desaparecendo assim os pequenos conjuntos de uso pessoal que os antecederam, agora reservados unicamente para viagem, muitas vezes guardados em requintados estojos.
Em Inglaterra é só durante o período Georgiano, quando a teatralização da mesa se desenvolve rapidamente, que os grandes faqueiros se popularizam. Durante todo esse século e o seguinte surgem novas peças para o serviço de mesa ligadas a novos usos relacionados com os novos hábitos alimentares, dando lugar a normas de etiqueta cada vez mais complicadas, acerca das quais havia que estar sempre a par. Deste modo, a colher desdobra-se em colher de mesa, de sobremesa, de chá, colher para ovos, colher para gelado; a faca evolui para faca de carne, de peixe, faca para o queijo, de sobremesa, faca manteigueira, faca para a fruta; e os garfos são agora específicos para salada, para ostras, para peixe, para carne, para sobremesa, para pickles, para melão. A estes três grandes grupos unem-se ainda diversos objetos de utilidade muito específica – como as pinças para caracóis, espargos, açúcar ou marisco; as tesouras para uvas ou os quebra-nozes -, assim como peças próprias para servir – talheres de salada, espátula de peixe, concha de sopa, conchas para molhos ou para especiarias, colher polvilhadora, espátulas para servir bolo, etc.
Garfo, colher e faca (de mesa e sobremesa) do faqueiro modelo King (97 OUR) – Museu Medeiros e Almeida
A colher é, sem dúvida, o primeiro dos utensílios de mesa a aparecer, tendo a sua origem nas antigas conchas que os nossos antepassados usavam para beber. Posteriormente fabricadas em diferentes materiais – madeira, osso, metal, madrepérola-, adquirem com o tempo um cabo para facilitar o seu uso. As colheres permanecem relativamente inalteradas através dos tempos, mudando apenas, para além da decoração, de acordo com as diferentes modas, o formato da concha e do cabo e o ângulo do seu encaixe.
As facas, por sua vez, derivam dos pedaços de pedra e outros materiais que em tempos pré-históricos foram usados para rasgar e cortar (carne, peles, plantas, madeira) e que evoluíram, nomeadamente a partir do uso dos metais, para o fabrico de verdadeiras lâminas. A finalidade das facas durante muito tempo foi a caça e o seu uso como armas, porém, a certa altura, começam a fabricar-se facas especificamente para serem utilizadas à mesa. Num primeiro momento, estas facas eram trazidas pelos convidados para uso pessoal, embora normalmente não fossem imprescindíveis, já que a carne era cortada pelo “trinchante”, pelo que as facas eram principalmente empregues para levar os alimentos sólidos à boca e, por isso, tinham a ponta afiada. A partir do século XVII, as facas fazem parte regular do serviço de mesa, diversificando-se a sua forma e função.
Os garfos foram os últimos a unir-se ao conjunto dos talheres de mesa e, embora formas arcaicas de garfos já fossem usadas pelos antigos gregos, só muitos séculos mais tarde encontramos referências regulares à utilização destes objetos. Originalmente, o garfo tinha apenas um único dente e era usado para auxiliar no processo de trinchar a carne. Como instrumento de serventia à mesa, junto da faca e da colher, aparece apenas nos finais da Idade Média e, ainda assim, de forma muito esporádica e só em alguns países, sendo que em Inglaterra o seu uso não se populariza até à segunda metade do século XVII. Em meados do século XVI o garfo, que então já contava com dois dentes, adquire um terceiro, mas será só no fim do século seguinte que se apresenta com a forma que conhecemos hoje, com uma curvatura que facilita o seu manuseamento e três ou quatro dentes mais curtos.[2]
Dos diferentes talheres com usos específicos, chamamos aqui a atenção apenas para aqueles representados no faqueiro da coleção Medeiros e Almeida. Assim, para além da colher, garfo e faca de mesa, encontramos colheres, garfos e facas de sobremesa, que variam apenas no tamanho, assim como acontece com as colheres de servir.
A colher e garfo para servir salada apresentam uma configuração ligeiramente diferente; no caso da colher, com a parte côncava mais estreita na união com o cabo e mais larga no extremo oposto e, no caso do garfo, com formato mais largo e côncavo e com seis dentes curtos.
À concha de sopa, de origem anterior, juntam-se as conchas para sal e especiarias, já utilizadas desde finais do século XVII, no início com forma de pequenas colheres de mesa, adquirindo posteriormente o formato atual. As conchas para molho e a concha para mostarda, surgem também no final do XVII mas só se popularizam no século seguinte. A colher polvilhadora apresenta a parte côncava perfurada para salpicar açúcar sobre algumas sobremesas formando padrões decorativos.
A espátula de peixe, com origem em meados do século XVIII, apresenta no exemplar da coleção a forma de uma folha pontiaguda e um elaborado trabalho de perfurados ao centro, como era habitual e, finalmente, o espeto de carne, que era originalmente uma peça utilitária de ferro usada na cozinha para segurar a carne que estava a ser cozinhada ou trinchada e que, posteriormente, já em prata e mais decorada, faz parte do faqueiro quando, a partir de meados do século XVIII, se institui o costume de trinchar a carne à mesa.
Peças do faqueiro modelo King (97 OUR) – Museu Medeiros e Almeida
King’s Pattern [3]
A prata do período da Regência (1800-1830), como este faqueiro modelo King, caracteriza-se pela combinação de classicismo e realismo. A inspiração de muitos ourives à época baseava-se numa apropriação livre dos motivos da antiguidade e não numa cópia exata dos mesmos, emulando as grandiosas pratas da firma Rundell & Bridge, ourives e joalheiros da coroa, que utilizavam nas suas peças elementos de influência egípcia, asiática ou do mundo greco-romano.[4] Nos talheres, a adoção da forma de violino, em uso em França desde o século anterior, é crucial e deriva em modelos como o famoso King’s Pattern.[5]
O padrão King é, provavelmente, o modelo mais popular e reconhecido de talheres em Inglaterra e, possivelmente, também no resto do mundo. A sua invenção, em inícios do século XIX, é normalmente atribuída a John Lias (ativo 1791 – após 1837) e ao seu filho Henry John Lias (ativo 1818 – após 1848), reconhecidos fabricantes de talheres de prata, famosos pelo exuberante design das suas peças. [6] Este modelo caracteriza-se pela forma de ampulheta da terminação do cabo e compreende concheados tanto na zona inferior como superior deste – na parte frontal e na posterior – e, ao centro, um motivo de flor de madressilva (Lonicera periclymenum). Em ocasiões, o concheado da parte superior é substituído por uma forma de ostra ou, como no caso dos exemplares da coleção Medeiros e Almeida, por uma outra flor de madressilva ou crisântemo.
A decoração dos talheres era realizada, maioritariamente, através do prensado das peças de prata lisas, sem ornamentação, entre dois moldes previamente esculpidos. O facto do modelo King ser um duplo padrão, com decoração patente em ambos os lados, pressupõe o uso de uma quantidade importante de prata para o seu fabrico, o que proporciona peças de aspeto robusto e torna estes faqueiros mais caros. Os melhores exemplares de faqueiros King’s Pattern são os fabricados em Londres na primeira metade do século, trabalhados à mão e, consequentemente, com uma decoração de alto-relevo, mais pronunciada e marcante em comparação com os realizados mecanicamente em Sheffield a partir da década de 1840, mais leves e planos.
Outros modelos decorativos relacionados com o modelo King, caracterizados também pela forma sinuosa da terminação do cabo e a presença de concheados, são o Queen’s Pattern (padrão da Rainha), mais decorativo e diferenciado pela presença de um botão de flor, e o Hourglass Pattern (padrão de ampulheta) que, como indica o seu nome, ostenta uma ampulheta como motivo decorativo.[7] [8]
King’s Pattern / Queen’s Pattern / Hourglass Pattern
O faqueiro modelo King da Coleção Medeiros e Almeida
Constituído por talheres de mesa para 24 comensais[9], talheres de sobremesa para 18 comensais, concha de sopa, duas colheres de servir, colher e garfo de salada, espátula de peixe, espeto de carne, quatro conchas de molho, uma concha de mostarda, seis conchas de especiarias e uma colher polvilhadora, este faqueiro em prata inglesa – onde todas as peças estão devidamente puncionadas seguindo o sistema britânico de marcas – exibe, para além da decoração própria do estilo King’s Pattern, timbres e outros símbolos.
Patente em todas as peças – com exceção das facas de mesa -, apresenta-se um timbre constituído por um gato selvagem escocês (Felis silvestris silvestris ou Felis silvestris grampia), animal típico das Terras Altas da Escócia e comum na heráldica Escocesa[10]. O gato é um animal frequentemente associado ao Clã Chattan, conhecido como “o Clã dos gatos”, e é usado, em diferentes poses, por vários dos seus clãs constituintes. Nos talheres da coleção, o gato aparece sobre virol, em posição salient (saliente) – representado no ato de saltar, com as duas patas traseiras no chão e as patas dianteiras no ar – e guardant (guardante), com o corpo posicionado de lado, mas com a cabeça voltada para o observador, o que nos leva a identificar este timbre como sendo o do Clã MacKintosh[11]. Rodeando o animal na parte superior, um listel com o slogan TOUCH NOT THE CAT BUT A GLOVE – por vezes escrito TOUCH NOT THE CAT BOT A GLOVE -, lema comum a vários dos clãs que surgiram do antigo Clã Chattan e à confederação de clãs posterior. [12] Este moto, que podemos traduzir por NÃO TOQUE NO GATO SEM A LUVA (em gaélico escocês NA BEAN DON CHAT GUN LAMHAINN), é interpretado pelos diferentes clãs de diversas formas, sendo que o mais provável é que seja uma advertência em relação ao perigo, em referência ao risco que pode acarretar um gato selvagem com as garras estendidas.
Todas as peças ostentam o timbre na frente, com exceção dos garfos, de mesa e de sobremesa, nos quais este aparece no verso. Isto porque entre c. 1770 e c. 1830 os garfos eram gravados na parte posterior já que a forma habitual de posicionar estas peças na mesa na Grã-Bretanha era com os dentes voltados para baixo, o que também afeta o desenho do cabo do garfo; ao gravar o timbre no verso da peça, este continuava a estar exposto.
As 24 facas de mesa da coleção exibem um timbre distinto do resto dos elementos do faqueiro, o que é revelador de uma proveniência diferente, sendo que originalmente terão pertencido a um outro faqueiro. Gravado na parte frontal do cabo de cada uma delas, embora de forma muito esquemática, uma pirâmide de folhas de louro em forma de cone sobre um virol (timbre da família Rous), encimada por uma coroa de conde (coroa de oito folhas, das quais quatro visíveis, e oito pérolas, das quais cinco visíveis), o que nos remete para Sir John Rous (1750-1827), nomeado Conde de Stradbroke em 1821. Porém, atendendo às marcas de datação das facas, entre 1838/39 e 1871/72 (ver seção seguinte), tudo indica que o encomendante do faqueiro ao qual pertenceram estas peças foi o seu filho, John Rous, 2º conde de Stradbroke (1794-1886).
O timbre é difícil de reconhecer baseando-nos no Fairbairn’s Book of Crests of the Families of Great Britain & Ireland [13], usado para a identificação do timbre do clã Mackintosh, já que o desenho das folhas na ilustração deste livro é muito menos rígido que o apresentado nos talheres. Porém, se atentarmos à representação das armas de Stradbroke no Burke’s Peerage & Baronetage[14], com o respetivo timbre a encimar o conjunto, torna-se muito mais evidente a atribuição.
Ilustração do timbre da família Rous no Fairbairn’s Book of Crest
Ilustração do brasão de armas do conde de Stradbroke no Burke’s Peerage & Baronetetage
Para além de timbre, tanto as facas de mesa como as facas de sobremesa apresentam, na parte frontal das lâminas, um outro símbolo estampilhado, o logotipo da Zwilling J.A. Henckels, empresa alemã com sede em Solingen fundada em 1731 por Peter Henckels.[15]
Logo da Zwilling J.A. Henckels patente na lâmina de uma faca de mesa (97 OUR) – Museu Medeiros e Almeida
Anúncio da J.A. Henkckels, publicado em 1925, com o mesmo logo
Debaixo do logo, a inscrição NICHT ROSTEND (não enferruja – inoxidável), que faz alusão ao facto das lâminas serem de aço inoxidável. Atendendo à datação das facas anteriormente referida (entre 1838/39 e 1871/72), e sendo que só no início do século XX é inventado o aço inoxidável, afigura-se óbvio que as atuais lâminas das facas não são as originais, algo muito comum. As facas são constituídas por duas partes, cabo e lâmina, que podem ser fabricadas de materiais diferentes, sendo que a vida da lâmina é, de modo geral, menor, já que sofre um maior desgaste devido ao contacto com os alimentos e à força nela aplicada, para além de ser habitualmente mais fina e ter de ser mantida afiada de modo a cumprir a sua função. Embora a troca de lâminas já fosse prática comum, com a chegada do aço inoxidável houve um envio massivo de facas a fábricas ou pequenas cutelarias a fim de substituir as antigas pelas mais modernas lâminas no novo material.[16]
Por tudo o que foi anteriormente dito, constatamos que os elementos do conjunto King’s Pattern da coleção Medeiros e Almeida é integrado por, no mínimo, peças procedentes de dois faqueiros: um com o timbre do clã Mackintosh e outro encomendado por (ou para) o 2º conde de Stradbroke e que exibe o timbre deste. Atualmente é muito raro encontrar um faqueiro inglês antigo completo, onde todas as peças do conjunto tenham sido realizadas pelo mesmo ourives na mesma altura e, por isso, todas elas apresentem a mesma decoração e marcas de fabrico. Porém, atendendo à definição de faqueiro dada no volume das Normas de Inventário dedicado à ourivesaria, faqueiro é o “conjunto de talheres que obedece a uma mesma unidade formal e decorativa, destinado à utilização dos comensais e ao serviço dos alimentos à mesa”[17] pelo que, num sentido lato, podemos considerar que o conjunto de talheres ingleses modelo King da coleção constitui um faqueiro, sendo que as 145 peças seguem um mesmo esquema decorativo, o King’s Pattern, e apresentam coerência não só em relação ao tamanho, peso e aparência, como também em termos relativos de origem e datação.
As marcas de fabrico
O sistema britânico para as marcas na prata remonta ao ano 1300, quando o rei Eduardo I da Inglaterra, para evitar fraudes e assegurar a pureza da prata, promulga um decreto no que exige que toda a prata seja marcada com uma cabeça de leopardo. Durante os seguintes séculos, foram sendo acrescentadas novas marcas sendo que, à época do nosso faqueiro, são cinco as punções presentes nos objetos de prata:
Marca do autor (maker’s mark): marca instituída em 1363 pelo rei Eduardo III e que é habitualmente constituída pelas iniciais do autor, embora originalmente fossem habituais símbolos. [18]
Marca do padrão de prata (sterling mark): desde 1544 um leão passante (lion passant), anteriormente uma cabeça de leopardo. Indica que a prata tem uma pureza de 92,5%.[19]
Marca da cidade (town mark): identifica a localidade em que a prata foi testada. A cabeça de leopardo coroada é a marca usada para a cidade de Londres desde 1478 até 1822, ano em que o leopardo perde a coroa.
Marca de datação (date mark): estabelecida em 1478, esta marca, caracterizada por uma letra e o perímetro que a contorna, indica o ano em que a peça foi testada, data que habitualmente coincide ou se aproxima à data de fabrico.[20]
Marca fiscal (duty mark): marca que garante que foi pago o imposto à Coroa. Em uso desde dezembro de 1784 até maio de 1890, esta marca corresponde ao perfil do soberano reinante, sucessivamente, o rei Jorge III, o rei Jorge IV, o rei Guilherme IV e a rainha Vitória.
Este conjunto de marcas permite, para além da salvaguarda do padrão de prata e da autenticidade do objeto, o enquadramento cronológico, geográfico e autoral do mesmo. Assim, a leitura das marcas presentes na grande maioria das peças do faqueiro modelo King da coleção (com exceção das facas de mesa que, como já foi referido anteriormente, pertenceram originalmente a um outro conjunto) possibilita inferir que estes talheres, da autoria do ourives Richard Poulden, foram fabricados em prata com pureza .925, foram puncionados na contrastaria de Londres entre maio de 1821 e maio de 1822 (tendo sido provavelmente também nesta altura produzidos) e que foi pago o imposto à Coroa, sendo o monarca reinante o rei Jorge III.
Existem, porém, alguns elementos do faqueiro que apresentam marcas ligeiramente diferentes, seja por motivos de datação ou de autoria, mantendo, contudo, o mesmo estilo King’s Pattern e o timbre correspondente ao Clã Mackintosh. Isto não é de todo inusual, pois era habitual que peças de um faqueiro se extraviassem ou ficassem danificadas pelo uso, tendo de ser substituídas por novas peças que eram encomendadas ao mesmo ou a outro ourives.
Marcas patentes no garfo de mesa FMA 2150: a marca de datação corresponde ao ano 1823-24 e, por isso, a cabeça de leopardo – marca da cidade de Londres – aparece já sem coroa e o perfil do monarca – marca fiscal – será o do rei Jorge IV. A marca de autor continua a ser a de Richard Poulden.
Marcas patentes na colher de sopa FMA 2249: marca de 1834-35, cabeça de leopardo sem coroar, perfil do rei Guilherme IV e sem marca de autor.
Marcas patentes na colher de sobremesa FMA 2205: punção para o ano 1838-39, com marca de cabeça de leopardo sem coroa e perfil da cabeça da rainha Vitória. A punção do ourives está incompleta, mas, possivelmente, corresponde ás iniciais FH dentro de um retângulo, marca do ourives Francis Higgins (c.1792-1880).
A concha para mostarda (FMA 2270) deste faqueiro, apresenta apenas a marca do autor, Richard Poulden, o que pode dever-se ao facto de ter sido alterada a certa altura perdendo-se as marcas originais. Atualmente podemos diferenciar claramente duas secções nesta peça, sendo evidente a união entre ambas.
As facas de mesa, pertencentes originalmente ao faqueiro do 2º conde de Stradbroke têm, na sua maioria, para além da marca do padrão da prata, a marca registada em 1840 pelo ourives George William Adams ao assumir a direção da firma Chawner & Co (as iniciais GA inseridas em dois círculos); a marca de datação correspondente ao ano 1865-66; a cabeça de leopardo sem coroa (símbolo da cidade de Londres) e o perfil da cabeça da rainha Vitória (marca fiscal).
Marcas patentes no cabo da faca de mesa FMA 2147 – Museu Medeiros e Almeida.
Na frente: marca do autor (George William Adams). No verso: padrão da prata .925; Londres; 1865-66 e marca fiscal com o perfil da rainha Vitória.
Curiosamente, as facas de mesa que exibem punções diferentes apresentam, com exceção de uma delas, datações anteriores, o que implica que não se tratam, como no caso das peças do faqueiro Mackintosh, de encomendas posteriores, mas sim de um reaproveitamento de facas preexistentes, o que não é irrazoável tendo em conta que o padrão King é amplamente reconhecido como um dos exemplos mais populares do design de talheres britânico e, por isso, muito frequente.
Existe uma outra faca (FMA 2141) que ostenta também a punção do ourives Francis Higgins (as iniciais FH dentro de um retângulo), mas na qual as outras marcas estão deficientemente puncionadas. Apesar disso, podemos datar esta peça entre os anos 1817 (ano em que a marca é registrada) e 1871, ano em que Higgins deixa de usar essa punção.
Os ourives
Como ficou explícito no elencar das marcas patentes no faqueiro em estudo, as diferentes peças que integram este conjunto são obra de diversos ourives.[21]
A maioria das facas de mesa (19) são obra da firma Chawner & Co sob a direção de George William Adams. A Chawner & Co foi fundada em 1815 por William Chawner quando, após o seu período de aprendizagem junto do ourives William Fearn e uma etapa associada com este e o seu sócio William Eley, Chawner decide empreender o seu caminho solitariamente. Em 1834, com apenas 51 anos, Chawner falece e a sua viúva toma conta do negócio, associando-se posteriormente, em 1840, ao seu genro, George William Adams. Adams assume a direção da firma e altera a marca para as suas iniciais – GA dentro de dois círculos – tal como aparece nas peças da coleção. A Chawner & Co alcança um grande êxito durante a direção de George Adams, tornando-se um dos maiores produtores de talheres de prata de alta qualidade da época, fornecedores de reputadas casas como a Hunt & Roskell, a Elkington & Co ou a Garrard & Co e participando em importantes exposições como a Grande Exposição de Londres de 1851.
A maior parte das restantes peças do faqueiro (116) estão puncionadas pelo ourives Richard Poulden, de quem pouco se sabe. Conhecem-se sim vários talheres com a mesma punção – R.P dentro de um retângulo – datados entre 1818, ano em que a marca foi registada, e 1825, entre os quais alguns com igual padrão decorativo.
Francis Higgins (c.1792 – 1880), cuja marca aparece em quatro facas e uma colher de sobremesa do faqueiro, regista a sua primeira marca – as iniciais FH dentro de um retângulo – a 31 de outubro de 1817, dando assim início oficial ao negócio de ourivesaria que já tinha começado com o seu pai, também Francis Higgins. O seu filho, Francis Higgins III (1818-1908), após um período em que se dedica a outras empresas, junta-se em 1868 à firma familiar, mudando o nome desta para Francis Higgins & Sons e registando, no ano seguinte, uma nova marca – FH num perímetro em forma de coração. Até a morte do pai, a maior parte do trabalho era dedicado ao fabrico de talheres, diversificando-se posteriormente a produção. A empresa continua na família até 1940 altura em que, durante a II Guerra Mundial, fecha portas definitivamente.
Uma única faca de mesa apresenta a marca conjunta da William Theobalds & Robert Metcalfe Atkinson, fabricantes de talheres, registada em 1838 e em uso apenas durante dois anos.
Proveniência
Atendendo aos timbres presentes no faqueiro modelo King da coleção, e como anteriormente referido, podemos presumir que uma parte deste conjunto fez originalmente parte de um faqueiro pertencente a um membro do Clã Mackintosh, clã escocês de Inverness, nas Terras Altas da Escócia. Considerando a datação das peças que apresentam este timbre, 1821-22, o chefe do clã nessa altura era Alexander Mackintosh ( – 1827), 24º chefe do clã Mackintosh e 25º chefe dos Chattan, que em 1820 herda os títulos e propriedades do seu tio, Sir Aeneas Mackintosh, falecido sem descendência direta. Porém, não terá sido necessariamente Alexander o encomendante do serviço.
No caso das facas de mesa, a proveniência é mais óbvia, sendo que o timbre da família Rous encimado por coroa de conde, juntamente com a datação das peças, remetem claramente para John Edward Cornwallis Rous, 2º conde de Stradbroke (1794-1886), nobre e militar britânico.
Caricatura do Conde de Stadbroke.
Ape (Carlo Pellegrini, 1839 – 1889), Vanity Fair, 31 de julho de 1875
Em junho de 1951, António de Medeiros e Almeida escreve uma carta a W.E. Burfitt[22], antiquário sediado em Londres a quem Medeiros e Almeida já tinha adquirido anteriormente diversas peças de ourivesaria, mostrando o seu interesse na compra de um faqueiro de prata antiga.
A 22 de agosto, o antiquário responde informando que acaba de adquirir um conjunto com as características pretendidas e anexa uma listagem exaustiva das 145 peças que constituem o faqueiro, assim como fotografias que ilustram as diferentes tipologias que o compõem. Na mesma carta, Burfitt ressalta a dificuldade em encontrar bons serviços de prata antiga: “Good antique silver services are very hard to find”[23], e informa ainda que o cliente a quem comprou estas peças – cuja identidade desconhecemos – estaria em condições de vender mais seis colheres e seis garfos de mesa.
Por fim, e após uma extensa troca de correspondência, Medeiros e Almeida adquire os talheres, juntamente com outras peças em prata,[24] a 7 de outubro de 1951.
Samantha Coleman-Aller
Museu Medeiros e Almeida
[1] Jan van Trigit, Cutlery from Gothic to Art Deco: The J. Hollander Collection (Gante: Pandora, 2003), Introdução de Alain Gruber.
[2] Herbert Brunner, Old Table Silver: A Handbook for Collectors and Amateurs (Londres: Faber and Faber, 1967), p.59
[3] Embora a tradução literal de King’s Pattern seja “padrão do Rei”, usaremos aqui a nomenclatura mais habitual na bibliografia portuguesa: padrão King, modelo King, estilo King ou, eventualmente, a própria denominação inglesa.
[4] Judith Banister, English Silver (Londres: Ward Lock, 1965), p.38
[5] Charles Oman, English Silver from Charles II to the Regency (Londres: The Connoiseur, s.d.), p.13
[6] Em 1918 John Lias e o seu filho Henry John Lias registam a primeira marca conjunta como fabricantes de talheres. A firma familiar continua, com diferentes marcas, passando de pais a filhos, até retirar-se, a meados de 1880 o último dos Lias, Henry John Lias II, passando a empresa ao seu socio, James Wakely, que junto com um novo parceiro, Frank Wheeler, passam a denominar-se Wakely & Wheeler.
[7] Rachel O’Keefe-Coulson, “King’s Pattern Cutlery”, AC Silver, dezembro de 2017, https://blog.acsilver.co.uk/2017/12/13/kings-pattern-cutlery/
[8] Na verdade, existem numerosos padrões de talheres desenvolvidos durante o século XIX relacionados com o modelo King, entre os quais: Albert, Coburg, Victoria, Princess, King’s Husk.
[9] Entendendo aqui talher como o “conjunto de uso individual constituído por colher, faca e garfo” [VV.AA., Normas de Inventário: Ourivesaria (Lisboa: Instituto dos Museus e da Conservação, 2011), s.v. “talher”].
[10] Arthus Charles Fox-Davies, A Complete Guide to Heraldry (Londres: TC & EC JACK, 1909), pp. 195-196
[11] James Fairbairn, Fairbairn’s Book of Crests of the Families of Great Britain & Ireland (Londres e Edimburgo: TC & EC JACK, 1905), vol.I – p.101 e vol.II – 26.3
[12] Os slogans (do gaélico-escocês sluagh-ghairm) são na sua origem os gritos de guerra próprios dos clãs escoceses, tendo passado posteriormente para a heráldica.
[13] James Fairbairn, op.cit., vol.II – 151.14
[14] Charles Mosley (ed.), Burke’s Peerage & Baronetage (London: Fitzroy Dearborn, 1999)
[15] Solinger, cidade na Renânia do norte-Vestfália, é conhecida como a “cidade das lâminas” (Klingenstadt) já que desde a idade media é célebre pelo fabrico de espadas, facas, tesouras, etc. Em 1731, Peter Henckels registra a marca ZWILLING na União dos Cutileiros de Solingen.
[16] David N. Nikigosyan, “Marks of Wellner Metal Ware Factory Products (Aue in Saxony)”, p.159, Silver Collection, https://www.silvercollection.it/WELLNER.pdf.
[17] VV.AA., Normas de Inventário: Ourivesaria (Lisboa: Instituto dos Museus e da Conservação, 2011), s.v. “faqueiro”.
[18] A marca de autor num talher não identifica, necessariamente, a pessoa que fisicamente realizou esse talher, mas sim o ourives que assume a responsabilidade. Isto é especialmente certo no caso de oficinas maiores onde existem equipas com indivíduos destinados a ofícios especializados: fundir, gravar, estampilhar, polir, etc.
[19] Entre 1697 e 1719 o padrão de prata muda para 95,84% e a marca é a figura sentada de Britânia. A partir de 1719 ambas marcas (o leão passante e a Britânia sentada) podem ser usadas, cada uma referente a um padrão de prata. Glasgow, Dublin e Edimburgo têm marcas diferentes para o padrão .925.
[20] O sistema de datação é ligeiramente diferente para as diversas contrastarias. Em Londres será um ciclo de 20 anos, em que cada ano, que começa em maio, é identificado por uma letra do alfabeto (salvo a J, V, W, X, Y e Z); em cada ciclo varia a fonte e o tamanho da letra e o formato da punção.
[21] Para mais informação sobre estes e outros ourives ingleses e as suas marcas ver: Arthur G. Grimwade, London Goldsmiths 1697-1837: Their Marks & Lives (Londres: Faber & Faber, 1990); John Culme, The Directory of Gold and Silversmiths: Jewellers and Allied Traders 1838-1914 (Woodbridge: Antique Collector’s Club, 1987).
[22] W.E. Burfitt foi um antiquário especializado em prata antiga sediado em Londres, onde operou entre 1930 e 1966.
[23] Transcrição literal de um excerto da carta de W.E. Burfitt a António de Medeiros e Almeida, datada de 22/08/1951 e conservada nos arquivos do Museu Medeiros e Almeida.
[24] Dois serviços de chá (FMA 1965-1966 e FMA 1967-1969), uma palmatoria (FMA 1856) e uma salva bilheteira (FMA 1817), todas estas peças em exposição permanente na Sala das Pratas do Museu Medeiros e Almeida.
Bibliografia
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Fairbairn, James. Fairbairn’s Book of Crests of the Families of Great Britain & Ireland. Londres e Edimburgo: TC & EC JACK, 1905, vol.I e vol.II
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Wenham, Edward. Old Silver for Modern Settings. Londres: G. Bell and Sons, 1950
Wyler, Seymour B. The Book of Old Silver. Nova Iorque: Crow Publishers, 1952
Webgrafia
“Flatware Patterns”. Antique Silver Spoons. Novembro de 2023. https://www.antiquesilverspoons.co.uk/knowledge-center/all-about-collecting-spoons/flatware-patterns/
“History of Hallmarking”. The Goldsmiths Company of Assay Offices. Novembro de 2023. https://www.assayofficelondon.co.uk/about-us/history-of-hallmarking
Denyer, Rachel. “George W. Adams and the Chawner Silversmiths”. Penrose Antiques. 3 de Setembro de 2013. https://penroseantiques.wordpress.com/2013/09/03/george-w-adams-and-the-chawner-silversmiths/
Garvin, Reagan. “A History of Flatware.”. Canvases, Carats and Curiosities. 10 de junho de 2017. https://rauantiques.com/blogs/canvases-carats-and-curiosities/flatware-history
Nikigosyan, David N. “Marks of Wellner Metal Ware Factory Products (Aue in Saxony)”. Silver Collection. s.d. Novembro de 2023. https://www.silvercollection.it/WELLNER.pdf
O’Keefe-Coulson, Rachel. “King’s Patterns Cutlery”. AC Silver. Dezembro de 2017. https://blog.acsilver.co.uk/2017/12/13/kings-pattern-cutlery/
The Clan Chattan Associaton. Novembro de 2023. https://clanchattan.org.uk/
COMO CITAR / HOW TO CITE:
Coleman-Aller, Samantha. Um faqueiro inglês de prata modelo King. Lisboa: Museu Medeiros e Almeida, 2023. https://www.museumedeirosealmeida.pt/pecas/um-faqueiro-ingles-de-prata-modelo-king/.
NOTAS:
Os nossos agradecimentos a James Rothwell, conservador de artes decorativas do National Trust, pela sua valiosa ajuda na identificação do timbre da família Rous.
A investigação em História da Arte é um trabalho permanentemente em curso. Caso tenha alguma informação ou queira colocar alguma questão a propósito deste texto, agradecemos o contacto para: info@museumedeirosealmeida.pt.
George William Adams (marca de 1840-1884); Richard Poulden (marca de 1818-1825); Francis Higgins (marca de 1817-1871); Francis Higgins & Sons (marca de 1869-1879); William Theobalds & Robert Metcalfe Atkinson (marca de 1838-1840)
Século XIX
Londres (Inglaterra)
Prata