Entrada de catálogo redigida pela Professora Doutora Teresa Leonor Vale (FLUL), no âmbito da exposição: “Monserrate Revisitado: a coleção Cook em Portugal”, realizada no Palácio de Monserrate, Sintra (PSML), entre 22 de Novembro de 2017 e 30 de Maio de 2018
NETO, M. João (Ed.). Monserrate Revisitado: a coleção Cook em Portugal. Lisboa: Caleidoscópio, 2017
“As duas estátuas, realizadas em mármore de Carrara, que aqui se identificam como Vénus e Meleagro, serão da autoria de um mesmo escultor pelas afinidades plásticas e ao nível do tratamento da superfície escultórica que ostentam, apesar de apenas uma delas (a de Vénus) apresentar a seguinte inscrição na base “fecit Isidorius Franchi”. Tal registo de autoria corresponde ao escultor Isidoro Franchi (c. 1660-/1665-c.1720), um carrarino, membro de uma família de arquitectos, mestres pedreiros e escultores activos na Toscana do século XVII ao XIX, que conta com obra relevante e razoavelmente conhecida precisamente naquela região de Itália. As duas estátuas teriam toda a probabilidade sido concebidas como um par (vejam-se, para além do idêntico tratamento a consonância em termos de dimensões) ou fariam parte de um conjunto mais numeroso de esculturas destinadas a um mesmo espaço, como se verifica com outras obras de Franchi (vejam-se, os bustos de personagens da mitologia clássica realizados, em 1696, para o palácio da família Corsini, em Florença, ou as representações das quatro estações, realizadas entre 1702-1703, para os jardins da Villa Corsini a Castello).
Oriundo de Cararra, como se referiu, Isidoro Franchi estava inscrito na Academia do Desenho de Florença em 1684 e escassos seis anos volvidos era já aceite como académico na mesma instituição, no seio da qual foi eleito “console scultore”, em anos sucessivos (Archivio di Stato di Firenze, Accademia del disegno 28, c. 91, ref. por VISONÀ 1998).
Em Florença trabalhou frequentemente em parceria com o escultor Anton Francesco Andreozzi (1663-1730), após o regresso deste último de Roma, em 1686. Com efeito, identificam-se obras de ambos na campanha da decoração escultórica da capela familiar dos Feroni na igreja da Santissima Annunziata de Florença, pertencendo-lhes as alegorias da Fidelidade e da Diligência, integrantes do monumento fúnebre de Francesco Feroni e ainda o par de anjos no pendente à esquerda do altar.
A temática mitológica é reconhecível em numerosas obras de Isidoro Franchi, nomeadamente naquelas realizadas ainda na década de noventa para o palácio florentino da família Del Chiaro (sito na Via dei Ginori). Entre estas obras contam-se quatro bustos e duas estátuas, realizadas numa escala um pouco inferior à natural – à semelhança daquelas que agora nos ocupam –, figurando Hércules lutando com o leão Nemo e Hércules repousando, com a maça e a pele (Archivio di Stato di Firenze, Compagnie religiose soppresse 1676, Filza di ricevute Del Chiaro 1693-1701, cc. n.n., Ibid.,Carte Tolomei Biffi 130, cc. 44, 46v., 47, ref. por VISONÀ 1998). Detentores de idêntica temática mitológica são os bustos, de 1696, destinados ao salão grande do palácio Corsini de Parione, figurando Baco, uma Ménade, Diana e um Fauno com uma pele de javali. Sempre para a mesma família e já nos derradeiros anos de Seiscentos, Isidoro Franchi continuou a esculpir estátuas e bustos, de temática clássica, sendo que algumas das peças se constituem como reinterpretações de obras da Antiguidade (vejam-se o Fauno com criança, obra assinada e constante da colecção do Duque de Devonshire em Chatsworth, Derbyshire – VISONÀ 1990, da qual faz parte também uma Vénus sentada).
As duas obras, que pertenceram à colecção de Sir Francis Cook e que na actualidade integram o acervo da Casa-Museu Medeiros e Almeida, revelam-se perfeitamente consonantes com a restante produção de Isidoro Franchi – marcada pela qualidade técnica, comedido dinamismo, delicadeza e graça no tratamento anatómico e fisionómico e adopção de referentes clássicos, seja do ponto de vista temático como compositivo – e em particular com as peças realizadas nos últimos anos de Seiscentos e primeiros anos da centúria sucessiva.
Na representação que aqui nos ocupa, Vénus surge acompanhada por um golfinho, em alusão ao seu nascimento no mar, replicando, no que à composição concerne, uma estátua romana do século II (que conheceu inúmeras variantes ao longo do tempo). Circunstância que apenas enfatiza os referentes clássicos concretos da obra de Franchi, a que acima se aludiu.
Idêntica situação se verifica com a figura masculina, que cremos ser de Meleagro, devedora da representação do personagem realizada por um anónimo artista romano no século II, tendo em conta o original grego, de Scopas, que se conserva no Museu Pio-Clementino dos Museus Vaticanos (Inv. 490; cujo acervo integra desde 1770, tendo sido levada para Paris pelas tropas napoleónicas mas posteriormente devolvida).
Ainda quanto à estátua de Meleagro, deve notar-se que o seu tratamento fisionómico apresenta evidentes afinidades com o modelo fixado pelas obras que derivam do original de Scopas, desde logo o busto do British Museum (Inv. GR 1906.1-17.1) e particularmente a já referida estátua do Museu Pio-Clementino (da qual existem aliás variantes no Antikensammlung, de Berlim, Inv. Sk 215, e no Art Institute de Chicago, Inv. no. 1972.935), denotando a preocupação do escultor em veicular o modelo eleito e enfatizando assim a radicação da sua obra no mesmo.”
Teresa Leonor Vale
BIBLIOGRAFIA
BELLESI, Sandro, Studi sulla pittura e sulla scultura del ‘600-‘700 a Firenze, Florença, Polistampa, 2013
PRATESI, Giovanni (coord.), Repertorio della scultura fiorentina del seicento e settecento, Vol. I, Turim, Umberto Allemandi, 1993
VISONÀ, Mara, “Giovanni Battista Foggini e gli altri artisti nella villa Corsini a Castello”, in Rivista d’Arte, XLII, Serie IV, vol. VI, 1990
VISONÀ, Mara, “Franchi”, Dizionario Biografico degli Italiani, Vol. 50, Roma, Treccani, 1998, pp. 76-77.
A Casa-Museu agradece a colaboração da Professora Doutora Teresa Leonor Vale da Faculdade de Letras Universidade de Lisboa.
Proveniência
As esculturas pertenceram ao espólio do Palácio de Monserrate, Sintra, provavelmente à coleção de Sir Francis Cook (18017-1901), 1º Baronete Cook, 1º Visconde de Monserrate, colecionador de arte e mecenas inglês. Desconhece-se a sua proveniência.
De acordo com uma campanha fotográfica do palácio, as duas estátuas encontravam-se em nichos na Sala da Música.
Medeiros e Almeida adquiriu as estátuas no leilão do Palácio Monserrate, realizado na Casa Liquidadora Leiria e Nascimento, Ldª. (Rua do Ouro, 292 – 1º esq.), Lisboa, em 7 de Novembro de 1946.
NOTA:
A propósito da exposição, recomendamos a leitura do texto do investigador e historiador de arte Hugo Xavier: “1946. Monserrate em leilão”: https://www.academia.edu/37209536/1946._Monserrate_em_Leil%C3%A3o
In: NETO, M. João (Ed.). Monserrate Revisitado: a coleção Cook em Portugal. Lisboa: Caleidoscópio, 2017
NOTA: A investigação é um trabalho permanentemente em curso. Caso tenha alguma informação ou queira colocar alguma questão a propósito deste texto, por favor contacte-nos através do correio eletrónico: info@casa-museumedeirosealmeida.pt
Palácio de Monserrate, Sintra – Exposição: “Monserrate Revisitado: a coleção Cook em Portugal” PSML – créditos Luís Duarte
Isidoro Franchi (c. 1660-/1665-c.1720)
Finais séc. XVII / Inícios séc. XVIII
Itália
Mármore Carrara
123 x 40 x 33 cm (figura feminina); 122 x 50 x 40 cm (figura masculina)