A Casa-Museu possui no seu acervo um conjunto de cerca 40 peças de vidro com camafeus cerâmicos incrustados, realizados na Real Fábrica da Vista Alegre entre 1837 e 1846, segundo a técnica “Crystallo Ceramie”. Os camafeus apresentam efígies de destacadas personalidades nacionais e internacionais entre as quais realeza, poetas, políticos, aristocratas bem como representações religiosas.
O vidro em Portugal
O vidro tem estado sempre presente na história de Portugal, seja como produto de trocas comerciais seja como fruto das próprias experiências de fabrico em território português, mas foi só no século XVIII que a indústria vidreira se desenvolveu definitivamente, sendo que até esse momento a produção era muito artesanal. Dessa época remota pode-se apenas resgatar alguns nomes como o do vidreiro Guilherme de Batalha, conhecido com esse nome por ter trabalhado no Mosteiro de Batalha.
Em 1719 D. João V estabeleceu a Fábrica Real de Coina, que constituiu uma tentativa de inovação, trazendo para Portugal técnicos e mão-de-obra estrangeira, procurando dar resposta não só à demanda de objetos de uso comum, como também aos produtos de luxo que eram requeridos por uma sociedade a viver uma época sumptuosa sustentada nos rendimentos do ouro que chegava do Brasil. Em 1748 a fábrica é transladada para a Marinha Grande, dando origem à tradição vidreira desta localidade. As razões da mudança terão provavelmente a ver com questões ligadas ao combustível que alimentava os fornos, numa época na que a madeira de boa qualidade estava destinada prioritariamente à construção naval.
Em 1769 o rei D. José I, por iniciativa do Marquês de Pombal, chama o inglês Guilherme Stephens para iniciar a construção da Real Fábrica de Vidros, que começa a produção em 1770, e fica sob proteção real. Esta fábrica será chave no desenvolvimento da região e fundamental na história da indústria do vidro em Portugal.
Copo ‘Escudo Real Joanino’
Em pouco tempo passa-se das seis fábricas vidreiras existentes no país em 1867 (entre as quais a da Marinha Grande e a da Vista Alegre fundada em 1824), para cerca de uma vintena nos primeiros anos do século XX. A explicação deste fenómeno tem a ver com diversos fatores, entre os quais se destacam a melhoria dos transportes (desenvolvimento do caminho de ferro e melhoria da rede viária), o aumento de população nos centros urbanos e, fundamentalmente, a mudança social que dará lugar a uma alteração nos hábitos de consumo que tendem para a estandardização.
O vidro na Fábrica da Vista Alegre
A Fábrica da Vista Alegre foi fundada em 1824, em Ílhavo, Aveiro, com o propósito de produzir porcelana, vidraria e estudar processos químicos, conforme alvará régio de 1 de Julho desse ano, obtendo todos os privilégios e isenções das Fábricas Nacionais. Cinco anos mais tarde recebia já o título de Real Fábrica. O seu fundador, José Ferreira Pinto Basto (1774-1839), dedicado ao comércio, ao imobiliário e à indústria, e que tinha já estabelecido um pequeno laboratório químico no jardim da sua casa em Lisboa uns anos antes para fazer ensaios sobre porcelana, associa os seus 15 filhos à fábrica, ficando a sociedade a denominar-se “Ferreira Pinto & Filhos”.
Nos primeiros anos de funcionamento da fábrica a manufatura de porcelana não foi bem-sucedida, dada a novidade dos processos em Portugal e a dificuldade em encontrar as matérias-primas necessárias, nomeadamente o caulino, dificuldade que só seria ultrapassada em 1832 ao encontrar-se na região uma jazida suficientemente rica para permitir a produção em grande escala. Porém, a produção de vidro é um sucesso, obtendo logo desde o início ótimos resultados e ocupando 62% dos trabalhadores da fábrica.
Dada a falta de técnicos qualificados em Portugal, tornou-se necessário trazer profissionais do estrangeiro sendo que, nos primeiros anos, os trabalhos de vidro são dirigidos por um alemão, Francisco Miller, que tinha já trabalhado na fábrica de Covo. Para a lapidagem veio um inglês, Samuel Hunles, que influenciou muito a produção durante a sua estadia e que forma vários discípulos. O laboratório químico era dirigido por um espanhol tendo chegado também um mestre italiano para a “floristagem”, mas fica em Lisboa, temeroso do clima do norte, para onde são enviados os aprendizes durante três anos, um dos quais, João Ferreira Ribeiro, voltará mais tarde para a Vista Alegre, para dirigir a respetiva oficina.
Em 1829 é publicado um primeiro catálogo ilustrado; “Coleção primeira de desenhos das peças de vidro e seus preços fabricadas na Real fábrica de porcelana, vidro e processos chymicos da Vista Alegre de Ferreira Pinto & Filhos” – ao qual é acrescentado um “Primeiro Suplemento” no mesmo ano -, onde se podem ver os já 260 modelos de peças em vidro e cristal que eram fabricados na altura na fábrica, assim como a nomenclatura e preços dos artigos.
É só uns anos mais tarde, entre 1837 e 1846, que a produção de vidros alcança o seu período áureo, sendo este o momento a que pertencem as peças com medalhões em estudo. Entre 1846 e 1848, a produção da Vista Alegre parou quase por completo devido à situação política que se vivia no país e, após esse parêntese, a produção de peças em vidro foi retomada com pouco ímpeto, limitando-se basicamente a vidro liso e vidraça, o que levou à saída de muitos trabalhadores, alguns dos quais fundaram anos mais tarde, em 1860, uma fábrica na Malhada que teve pouca duração, enquanto outros procuraram trabalho noutros centros, nomeadamente na fábrica da Marinha Grande.
Tendo sido encontrada a jazida de caulino nas imediações da fábrica, esta dedicou-se também à produção de porcelana. À medida que crescia a qualidade da porcelana produzida na Vista Alegre, menos atenção era dispensada ao vidro e ao cristal, interrompendo-se a produção definitivamente em 1880. Esta interrupção foi ainda motivada pelo aumento da concorrência com o aparecimento de novos centros de fabrico, pela saída de trabalhadores qualificados que veio diminuir a qualidade das peças, e também, sem dúvida, pelas mudanças sociais do país.
Na atualidade, salvo as peças conservadas no Museu da Vista Alegre e em coleções privadas como a da Casa-Museu Medeiros e Almeida, e os exemplares dos catálogos publicados, não existem quaisquer vestígios da produção de vidros e cristais desta fábrica, sendo que provavelmente a maioria dos moldes foram fundidos ou vendidos.
Desde muito cedo, os vidros e cristais da Vista Alegre participaram em diversas exposições, entre as quais as organizadas em Lisboa pela Sociedade Promotora da Indústria Nacional (exposições de 1838, de 1844 e de 1848), mas também fora de Portugal, como na Grande Exposição de 1851 no Palácio de Cristal em Londres, onde a vidraça pintada obteve uma Menção Honrosa.
A “Crystallo Ceramie”
A “Crystallo Ceramie”, ou a arte da incrustação de camafeus cerâmicos em objetos de vidro, deve o seu nome ao vidreiro inglês Apsley Pellatt (1791-1863), que patenteou esta técnica em 1819. No seu livro de 1849, Curiosities of Glassmaking, Pellatt explica como as primeiras tentativas de incrustar pequenas figuras cerâmicas em objetos de vidro tiveram lugar na Boémia, mas com pouco êxito, já que a argila utilizada não estava adaptada para ser combinada com o vidro, formando bolhas de ar que impediam a total aderência. A ideia foi retomada por vidreiros franceses, que lograram melhorar o método, o que daria lugar a várias peças com efígies de Napoleão Bonaparte que foram vendidas a elevados preços. Porém, visto que muitas peças se partiam no processo, este não se tornou rentável.
Quando Pellat decide recuperar esta técnica decorativa, consegue melhorá-la de modo a que as incrustações fiquem realmente incorporadas no vidro. O processo consistia em preparar uma bolsa cilíndrica de vidro cristalino, estando um dos lados unido a uma cana e o outro aberto por onde se introduzia a peça cerâmica ainda quente; a seguir fechava-se essa abertura e, pela cana, tirava-se o ar ao mesmo tempo que era reaquecido o conjunto, de modo que o vidro e a incrustação ficavam a constituir uma massa homogénea. Pellat tinha vislumbrado um futuro promissório para estas peças, que serviriam para imortalizar e prestar homenagem aos grandes nomes da história contemporânea porém, a maioria dos camafeus são bustos de homens e mulheres contemporâneos ou anteriores à data da patente, o que leva a pensar que a técnica foi somente utilisada durante um breve período de tempo.
Em Portugal esta técnica foi usada de forma brilhante na Fábrica da Vista Alegre, dando lugar entre os anos 1837 e 1846, a inúmeras peças com camafeus de personagens célebres. Entre estas peças existem copos, açucareiros, cálices, pratos e medalhões, sendo alguns mais comuns do que outros, existindo ainda exemplares cuja raridade faz pensar em que foram encomendas exclusivas, como veremos a seguir.
D. Maria II e D. Fernando / Verso do camafeu de Duque de Bragança
Vidros com Camafeus da Casa-Museu
Na coleção de vidros e cristais da Casa-Museu Medeiros e Almeida, podemos ressaltar o núcleo dos vidros e cristais da Vista Alegre, integrado por diferentes tipologias, desde objetos utilitários (copos, cálices, taças, jarras e jarros, açucareiros, compoteiras, pratos, frascos, garrafas, galheteiros) a peças decorativas e ainda outras de uso industrial (artefactos de laboratório como alambiques, frascos tubulares, campânulas, etc.). De entre todo este conjunto destacam-se, pela sua qualidade, originalidade e por se terem tornado na altura na imagem de marca da empresa, os vidros com camafeus cerâmicos incrustados.
Estes vidros com camafeus – na maioria copos mas também pratos, caixinhas e medalhões – foram produzidos entre 1837 e 1846, momento em que a moda dos camafeus está disseminada por toda Europa que coincide também com a época dourada do vidro nesta fábrica portuguesa.
A técnica da “Crystallo Ceramie” chega à fábrica da Vista Alegre, possivelmente, através do britânico Samuel Hungles, virtuoso artista que em 1826 tinha vindo para trabalhar na fábrica e que viria a influenciar profundamente a produção vidreira da Vista Alegre. Este vidreiro era sem dúvida conhecedor da técnica patenteada por Apsley Pellatt e, muito provavelmente, também do seu livro, publicado em 1821; The Origin, Progress and Improvement of Glass Manufacture.
As criações de vidros com camafeus cerâmicos da Vista Alegre deram lugar a uma série de peças comemorativas que mostram efígies de poetas – como Dante, Petrarca ou Camões – ou personagens da corte e figuras ligadas ao liberalismo – D. Maria II, D. Pedro IV, o duque de Palmela -, mas também medalhões de temática religiosa. Algumas obras contendo efígies de certos personagens são tão difíceis de encontrar que se torna claro que foram fruto de encomendas específicas, enquanto outras eram produzidas em maior escala para a venda ao público em geral. De todas estas tipologias a Casa-Museu conta com destacados exemplares, sendo que durante este mês de julho estará patente uma mostra no Salão com 23 peças das mais de 40 peças da coleção.
Dos exemplares atualmente em exposição destacam-se, pela sua raridade ou especificidades, os seguintes:
Copos e pratos com efígies de D. Pedro IV / Copos e pratos com efígies de D. Maria II – Peças relativamente frequentes, existindo diferentes modelos com camafeus com estas efígies; em alguns deles pode ler-se na parte posterior dos camafeus, escrito a tinta azul, “Dona Maria II Rainha de Portugal”, e “Dom Pedro Duque de Bragança”. Como modelo para a representação da rainha terá sido usada uma medalha, chamada “A degolada”, realizada por Barre e cunhada em Paris em 1833.
Copo D. João VI – Possivelmente um tributo póstumo ao rei sob cujo reinado a Fábrica da Vista Alegre foi fundada. Segundo Augusto Cardoso Pinto, no seu artigo “Portuguese Glass Cameos”, publicado no número de fevereiro de 1956 da revista Connoisseur, só se conhecem “dois ou três espécimes destes copos”, o que, considerando que na coleção da Casa-Museu existem dois exemplares, dá uma ideia clara da sua raridade.
Copo Duque de Palmela – Os copos com a efígie de Dom Pedro de Sousa Holstein, destacado liberal, são também raros de encontrar.
Copo com efígie de Luiz de Camões – Estes copos foram realizados para o primeiro diretor da fábrica, Augusto Ferreira Pinto Basto, filho do fundador. A efígie do poeta usou como modelo uma medalha moldada por Caqué e cunhada em 1821 na Casa da Moeda de Paris.
É de realçar que Margarida Pinto Basto, mulher de Medeiros e Almeida, era membro da família fundadora da Fábrica da Vista Alegre, o que justifica a qualidade dos exemplares do acervo.
Samantha Coleman Aller
Casa-Museu Medeiros e Almeida
NOTA: A investigação é um trabalho permanentemente em curso. Caso tenha alguma informação ou queira colocar alguma questão a propósito deste texto, por favor contacte-nos através do correio eletrónico: info@casa-museumedeirosealmeida.pt
Bibliografia :
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MACEDO, Jorge Borges de (introd.) e CARDOSO, António Homem (fotógr.), Vista Alegre Porcelanas, Lisboa: Inapa, 1989
MENDES, José Amado, História do Vidro e do Cristal, Lisboa: Inapa, 2002
VALENTE, Vasco; O Vidro em Portugal, Porto: Portucalense Editora, 1950
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Fábrica de Porcelana da Vista Alegre (Ílhavo, Portugal), ed. lit., II Leilão Vista Alegre: Cristais, vidros, porcelanas e biscuits, Lisboa: Estar Editora, 1998
Fábrica Real da Vista Alegre
1837-1846
Ílhavo, Aveiro, Portugal
Vidro e camafeus cerâmicos
Variadas